sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Boom Bap Jams Volume II

Duas semanas depois, estamos aqui com a segunda versão do Boom Bap Jams. Gostei das dicas do pessoal do primeiro post, espero mais coisas boas desta vez, ok? Pois bem, aqui vai a minha lista de mais tocadas para este fim de semana acima de 40 graus no Rio de Janeiro. Coloque-as no seu MP4/iPod e corra para a praia.

* 4th Disciple & ShoGun Assason - Tha Fall
Joia rara, encontrada numa compilação obscura de um dos principais produtores do mundo Wu. O 4th Disciple inclusive já contribuiu com beats para alguns dos principais trabalhos do Wu. Nesta faixa, que é de uma coletânea dele, chamada "The Best of 740", com leftovers da carreira, a marca wu-tangclaniana é evidente: batidão pesado, caixas matadoras e um sample sensacional do Star Wars. O Shogun é mais um entre os milhares de emcees afiliados ao Wu, mas não faz feio; a letra é um misto de referências a filosofia 5 Percenter, islamismo, revolução, battle rap e guerra.

* Public Enemy - He Got Game
Depois de assistir ao filme homônimo, do Spike Lee, com Ray Allen e Denzel Washington, imediatamente a faixa título entrou no MP3. Embora tenha sido lançado bem depois dos áureos tempos do PE, Chuck D e companhia continuam contundentes. A batida, que sampleia de forma simples o rock "For What It's Worth", da banda Buffalo Springfield, em nada lembra a anarquia de samples dos primeiros álbuns, mas ainda assim funciona perfeitamente para as rimas sempre cheias de força de mister Chuck. O primeiro verso, então, é espetacular. "Minha caminhada fez o meu traseiro se perguntar / onde está Cristo em meio a esta crise / odiando Satã, nunca soube o quão isso é legal".

* Royce da 5'9'' - Hood Love feat. Bun B & Joell Ortiz
Ainda não ouvi o disco novo do Royce com a devida atenção, mas esta faixa não passou despercebida por mim. "Hood Love" é mais uma para o catálogo de contribuições entre o emcee de Detroit e o lendário DJ Premier. Já dá para saber que o beat é imaculado, né? Pois bem, aqueles samples picotados de forma bem visível e a bateria pulsante continuam lá, só faltou o refrão com scratches. Parece que o Primo está investindo mais em strings, e, assim como o "Ain't Nuttin Changed", do Blaq Poet, o sample principal aqui também está nas cordas. Tudo para Royce e seus parceiros rimarem sobre seus hobbies quando estão na comunidade. Royce entra em modo introspectivo, Bun B fala sobre as particularidades do bairro dele e o Ortiz segue pelo mesmo caminho, mas faz jus a seus quilos a mais e gasta umas boas linhas falando sobre churrasco e outras comidas.

* Wale - Mama Told Me
Mais um álbum que ainda não ouvi direito, e mais uma faixa que, mesmo assim, já capturei. A batida é do promissor Best Kept Secret e é o ponto alto da canção, embora meio que me lembre os beats que saem quando acionam a fórmula de imitar o 9th Wonder - leia-se samples soul e caixas marcantes. Confesso que nem prestei muita atenção no Wale, o instrumental é realmente bom.

* CunninLynguists - Love Ain't feat. Tonedeff
Depois de resenhar o disco novo, acabei revisitando os trabalhos antigos, e achei esta pérola, do disco "Southernunderground". O Tonedeff é um dos caras mais completos do rap, e pouca gente reconhece ele, quase não se fala nele. Aqui, ele ataca novamente com a levada mais rápida do mundo; mas não é só isso: a escrita do cara é sensacional, tanto em termos de mensagem quanto tecnicamente. Ouça e fique doido pensando que ele está repetindo as palavras, quando na verdade é uma montanha de rimas multissilábicas entregues em alta velocidade. O beat do Kno segue aquele estilo dele. O efeito de deixar o Tone rimando a capela para só depois vir a pancada é sensacional.

* Tonedeff - Disappointed
Falando em Tonedeff, chegamos ao primeiro single do último disco do cara, "Archetype". Mais uma vez, as habilidades do cara estão no auge: batida de autoria própria que casa perfeitamente com o tema, que é basicamente o desapontamento do Tone depois que ele consegue sair com a garota dos sonhos e descobre que ela não é tudo aquilo que ele imaginava. A levada é mais lenta, mas o tom de ironia e a capacidade de rimar como se fosse a coisa mais fácil do mundo contam pontos a favor. "Eu usualmente só saio com pilotos femininas, porque elas tem os melhores cockpits"; sendo cock = gíria para pênis; pit = buraco. Pegaram? Hã, hã? Mas a melhor punchline é essa: "Os caras, revoltados, a chamam de puta, eu peço a Deus para que seja verdade / porque uma puta dá para todo mundo, já a vadia dá para todo mundo, menos para você".

* GZA - Cold World
Direto de um dos melhores álbuns de todo tempo, o senhor GZA The Genius nos traz um relato sombrio sobre seu bairro com um storytelling impecável. E então chega Inspectah Deck, mais descritivo do que narrativo, mas ainda em alto nível. O refrão é meio enjoativo, mas a batida turva de RZA compensa qualquer coisa, com minimalismo e obscuridade. É do Rebel INS a melhor linha; depois de falar sobre assassinatos e intrigas do crime, ele arrebata: "Você testemunha a saga, as casualidades e o drama / a vida é um roteiro, eu não sou ator, e sim o autor desta ópera dos dias modernos / onde o protagonista é o papel presidencial, o fator dominante".

* Tech N9ne - Red Nose
Dica do Paulo, que já havia me pedido há um tempo um post sobre essa música, mas, como eu sou vacilão, não tinha atendido ainda. Tech N9ne é um dos caras mais singulares do rap, um estilo completamente diferente do que vemos por aí, seja underground ou mainstream. Na verdade, Tecca N9na é um caso raro de underground bem sucedido financeiramente;ele já vendeu mais de um milhão de discos. Em "Red Nose", ele fala sobre tudo isso numa letra bem pessoal: a desconfiança das pessoas por ele ser tão diferente, algo que ocorre desde sua infância. O flow é sensacional, uma mistura entre levada rápida e cantoria, no melhor estilo Bone Thugs, mas bem mais lírico. O sentimento deste emcee singular é resumido ainda no primeiro verso: "Mano, acredite / nada é pior do que você saber que é bonito / mas ser tratado como um pato feio".

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Tradução: Fashawn - Life As A Shorty

Como prometido na primeira edição do Boom Bap Jams, aqui está a tradução do primeiro single do disco "Boy Meets World", do emcee revelação Fashawn. Produzida pelo Exile, a faixa aborda a infância do rapper de uma maneira bem humorada, mas sem deixar de dar uns cutucões aqui e ali. Lembra também bastante o estilo do Blu, mas isso já foi dito na resenha sobre o álbum.

Verso I:
Lembre-se: vivendo num trailer
cozinhando o jantar num forno velho ou então no microondas
básico, televisão com as mesmas sete estações
com doze polegadas, eu tinha de assistir à TV a cabo nos vizinhos
não sabia o quanto éramos falidos até ficar mais velho
nunca soube que tinha um pai, até ele aparecer
do nada, tentando voltar com a minha mãe
meu padastro aparece, e então começa o drama
eu tive um monte deles, para ser honesto
como o William e o Scott, eles sempre me levavam para fazer compras
Ralphie e Mark, eles me levavam ao médico
eu chamo todos eles de papai, mesmo embora eles não tenham me feito
as crianças costumavam fazer piada com as minhas roupas
até um deles ser esmurrado no nariz
é tipo como se eu fosse forçado a ser durão
a vida de uma criança não deveria ser tão difícil, mas aí

Refrão: J. Mitchell
Mesmo embora eu seja jovem e não possa ver
a floresta das árvores, siga-me
e quando eu for crescido, você sabe que eu serei
o H.N.I.C.*, siga-me
Mamãe, eu vou estar bem, só deixe-me fazer minhas coisas
seguindo meus sonhos, este sou eu

Verso II:
Primeira luta, terceira série, eu estava girando nos ombros
daquele menino chamado Darian, ele era três anos mais velho
e uns 60 centímetros mais alto, eu terminei, ele começou
tudo por causa daquela menina chamada Barbara Johnson
"sem sentido" foi o que pensei quando o diretor chegou
aquele lábio carnudo realmente mudou o meu jeito
nunca na minha vida eu havia sentido tanta dor
fui mandado pra casa, mas me segurei por conta própria
dormi direto a cada manhã, foi tipo férias
como eu conseguiria passar de ano na sexta série?
porque eu estava sempre matando aula, andando junto com alguns excluídos
com distúrbio de déficit de atenção, e todos eles fumavam maconha
nunca leram algo de literatura, não eram bons ouvintes
nunca prestaram atenção, então passaram a andar ao meu redor
enquanto meus pais estavam nas ruas
eu construí o meu mundo numa folha limpa, apenas pensando em mim mesmo

Refrão

Verso III:
Veja só, difícil de esquecer todo o tempo que eu ia gastar
com a minha primeira transa, até me fez evitar os meus amigos
coloquei o meu coração numa luva com quinze anos
ela dizia que me amava, mas era tudo fingimento
ela me traiu, então rapidamente aquilo chegou ao fim
ela colocou a culpa em mim, fui enganado, admito isso
andando com meus amigos, nunca liguei para ela de novo
cinco anos depois, soube que ela havia tido um filho, que merda
eu acho que o tempo voa quando você está se divertindo
então aproveite a vida, você só tem uma
eu amei minha infância, apesar dos tiroteios
eu fui bastante feliz crescendo na favela
não foi tão ruim assim, tendo alguns pais
a única coisa que eu não gostei foi não ter dinheiro
o que eu daria por alguns trocados
cara, a vida de criança não deveria ser tão difícil, mas aí

*: H.N.I.C. é uma sigla para Head Nigga In Charge, que significa mais ou menos o cara que está no comando, mas num sentido pejorativo.

Vídeo de "Life As A Shorty":

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Cunninlynguists: Strange Journey Volume Two

Ano: 2009
Gravadora: QN5 Music
Produtores: Kno (todas as faixas, exceto 11 e 13), Blue Sky Blacj Death (faixa 11), J-Zone (faixa 13).
Participações: Freddie Gibbs (faixa 2), Extended Famm (3), Substantial (3), Sean Price (4), Poison Pen (4), Cashmere The Pro (7), Geologic of Blue Scholars (9), Grieves (9), Macklemore (9), Evidence (14), E-40 (14), Witchdoctor (15).

Na luta pelo prêmio de hip-hoppers que mais ocupados estiveram durante o ano, os Cunninlynguists lançaram o segundo volume do híbrido de mixtape/álbum/coletânea dedicado às agruras de se estar na turnê "Strange Journey". Como na primeira edição, que chegou aos nossos ouvidos no começo do ano, o trabalho traz várias participações inusitadas, expandindo o cardápio de rappers para além do catálogo da QN5 - e isso não é uma crítica. Um ponto divergente entre os dois discos, porém, é o alvo dos holofotes. E "Volume Two" soa muito mais como um protótipo de álbum de produtor do talentosíssimo Kno, o beatmaker do grupo. E isso também não é uma crítica.

Das 16 faixas do álbum, 13 são produzidas por Kno - as outras são um remix do coletivo Blue Sky Black Death, um beat de J-Zone e a última, uma versão ao vivo de "Nothing to Give", de "A Piece of Strange". E o que nós percebemos é que o branquelo por trás das caixas e bumbos cada dia mais consolida o seu estilo e expande seu leque de opções, por mais contraditório que isso possa parecer. E o grande trunfo para essa abertura é, suponho, os diferentes estilos de emcees que aparecem para dar um alô e cuspir 16 linhas. Caras criados a base de boom bap nova-iorquino como o inigualável Sean Price, ou malandros veteranos da Califórnia, como o também carismático E-40, meio que forçam Kno a esquecer um pouco aqueles samples vocais vindos das profundezas de um sebo obscuro e os cortes absolutamente elegantes. Mas o moleque não é tão submisso, e também força os rappers a se encaixarem nos seus padrões. No fim das contas, é um meio-termo, um impasse "vai-você-um-pouco-que-eu-vou-também" que faz a festa dos ouvintes.

"Streets", a tal faixa que traz Sean P, é um exemplo. Uma voz masculina sussurrando "streets" por toda a faixa mostra as armas de Kno, mas é razoável imaginar que, ao perceber a levada imaculada de Ruck, o beatmaker se viu obrigado a colocar mais peso em suas caixas. Mas é quando o ciclo se fecha à gravadora QN5 e seu cast que as coisas ficam realmente sérias no disco. Primeiro, a Extended Famm, com Tonedeff e PackFM, aparece no remix de "The W.W.K.Y.A. Tour" e nos provê com a única que segue realmente o tal conceito das turnês. Com rimas hilárias, o pessoal nos conta situações típicas de um grupo de rap na estrada, como os invejosos e, claro, as vadias. O beat é Kno no que ele faz melhor: pilhas de samples organizados com a maior finesse possível, sem perder o lado amigável da parada - e aquele coro falando "pa, parapa" vai ficar na sua cabeça por dias.

Existem outras demonstrações do maior estilo Kno de produzir. "Tear Trax" é uma delas. O protegido Cashmere The Pro é abençoado com o melhor instrumental do projeto, um beat lindíssimo, com vocais épicos, um violão nostálgico e strings emocionantes. Para fazer jus, ele escreve um rap sobre alguma mulher, descrevendo-a de maneira poética e apaixonada, para depois contar a sua estória de esposa que sofre agressão do companheiro mas segue dando chances a ele. E a combinação entre batida e letra é simplesmente perfeita. Seguindo a linha de versos emotivos para bases igualmente emocionantes, chegamos a "Still With Me". O saxofone que guia a faixa é simplesmente lindo e dá o toque ideal para Jermiside e Deacon falarem sobre pessoas conhecidas que já faleceram. Eu nunca tinha ouvido falar do Jermiside, mas ele me surpreendeu, com rimas bem escritas e bem estruturadas e um flow bastante decente.

Como dito acima, o tal conceito de falar sobre assuntos ligadas à época de turnê não é executado neste segundo volume, o que contribui para a impressão de que é mais uma mixtape do que propriamente um álbum. A liberdade dos convidados para falarem sobre o que bem entendem é bem notável. Witchdoctor, por exemplo, fala sobre Deus numa visão bem cristã em "Everywhere". "Running Wild", com os costa-oeste Evidence e E-40 trata dos onipresentes problemas da vida nas ruas com o estilo típico do Oceano Pacífico. A dupla dos Cunninlynguists, Deacon e Natti, só aparece junta, na verdade, em quatro faixas. Dessas, o destaque é para "To be for real", uma análise sobre aquela velha frase do Hip-Hop: ser verdadeiro. E a abordagem dos emcees é bem original.

Chegando ao fim deste "Volume Two", uma certeza: Kno é um produtor espetacular e merece muito mais crédito do que recebe. Caso algum dia tenhamos um projeto solo dele, esta mixtape/coletânea/álbum é um bom indicativo do que podemos esperar. Outra coisa é certa: os Cunninlynguists continuam como um dos grupos underground mais ativos e de maior sucesso nos Estados Unidos. Conseguiram lançar dois trabalhos de grande qualidade num só ano e continuam fazendo música boa. Os caras fecham 2009 com totais perspectivas de maior sucesso nos próximos anos. Sampleando o Emicida: "e foi só com a mixtape, tá?".

Cunninlynguists - Strange Journey Volume Two
1. Departure – Part 2 [Intro]
2. Imperial
3. The WWKYA Tour [Remix]
4. Streets
5. Heart
6. To Be For Real
7. Tear Trax
8. Still With Me [Remix]
9. Close Your Eyes
10. Pit Stop
11. The Park (Fresh Air) [Blue Sky Black Death Remix]
12. Nothing To Give [Live]
13. Cocaine
14. Running Wild
15. Everywhere
16. Arrival [Outro]

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Aceyalone: Aceyalone & The Lonely Ones

Ano: 2009
Gravadora: Deconstruction
Produtor: Bionik (todas as faixas)
Participações: Bionik ( faixas 2, 4, 8 e 9) e Treasure Davis (3 e 7)

Aceyalone é daqueles tesouros escondidos do Hip-Hop. O cara tá na ativa desde o começo da década de 1990 e tem um catálogo de discos invejável. Fez parte também do influente grupo alternativo da Costa Oeste Freestyle Fellowship, um dos primeiros a misturar o jazz e o rap por aquelas bandas. Apesar de tudo isso, nosso amigo Acey raramente é lembrado entre os grandes ícones do rap. Sua levada descontraída, suas letras complexas e o carisma estampado em cada sílaba pronunciada não foram suficientes nesta máquina de Lil'Waynes e The Games que se tornou a indústria do Hip-Hop.

Além de tudo, Aceyalone é inquieto. Seu mais novo projeto consiste em revisitar os gêneros-pais do rap. O primeiro disco da série foi "Lightning Strikes", no qual o emcee californiano fez uma viagem sonora à Jamaica do ragga e dancehall. O segundo volume é um pouco mais tradicional: o R&B dos anos 1960 é o escolhido para esta regressão musical. Para tanto, Acey chamou a banda The Lonely Ones para a empreitada. O resultado é o disco homônimo: "Aceyalone & The Lonely Ones", e já dá para ver que a missão foi incorporada inclusive no título da parada.

O interessante é que, para se adaptar ao conceito do álbum, Aceyalone precisa mudar um pouco seu estilo. As rimas complexas supracitadas, cheias de duplo significado e com malabarismos líricos, ficam para trás, em favor de uma escrita mais simples, mais direta. Podem argumentar que Acey teve de fazer concessões à sua arte, mas a verdade é que, se ele quer revisitar antigos gêneros e emulá-los numa roupagem Hip-Hop, isto é necessário. De alguma maneira, porém, o rapper compensa com o flow característico, que faz a arte de rimar parecer tão fácil e simples, a ponto de qualquer um querer ser um emcee nos dias de hoje. Não, amiguinhos, o que o senhor Aceyalone faz não é tão simples quanto parece; a capacidade de enfatizar a palavra certa na linha, o controle de respiração, o ar blasé de quem sabe que rima muito bem, tudo isso é algo inerente a Acey.

Mas não se pode cravar que não há boas letras no disco. Existem, e são diversas. Podem tratar de uma mulher que, ao tentar consertar o carro quebrado na estrada, encontra com Aceyalone e é cortejada pelo rapper em "The Lonely Ones", ou até mesmo reivindicar o "poder de volta ao povo" em "Power to the People". Na verdade, parece que Acey se empolga um pouco, porque, na verdade, na verdade, o poder nunca esteve com o povo, não é mesmo? Ainda assim, a mensagem da faixa é bem efetiva e representa uma mudança de marchas no disco. E pode funcionar também como o paralelo para clássicas músicas políticas que o soul norte-americano presenciou em fins da década de 60 e início da de 70.

O que se pode cravar, por outro lado, é que este é um projeto voltado quase exclusivamente para o groove. A já decantada habilidade de Aceyalone no microfone transforma a voz do rapper em mais um eficiente instrumento na banda The Lonely Ones. Um verdadeiro caldeirão tradicional de ritmos negros norte-americanos, o grupo mistura jazz, funk e soul com uma facilidade que só um ianque nativo poderia. O resultado são instrumentais deliciosos, cheios de suíngue e capazes de se intrometerem em qualquer festa black de gêneros antigos sem serem "descobertos" como atuais e, imaginem!, rap. Destaque para o saxofone mortal de "On The One", a apresentação, instrumento por instrumento, dos músicos em "Can't Hold Back", numa atmosfera de improviso e show ao vivo bastante bem-vinda. "The Way It Was" não nega o nome e é uma das mais efetivas na proposta de voltar algumas décadas no mosaico musical dos EUA. Ainda temos a talentosa Treasure Davis dando uma canja em "Step Up" como se tivesse saído diretamente de algum rádio do sul norte-americano de 40 anos atrás.

No fim desta regressão, a impressão que se tem é que Aceyalone é um artista completo, e muito, muito injustiçado. O cara tem êxito tanto nos seus discos "normais" como em projetos conceituais como "Aceyalone & The Lonely Ones". É inegável, porém, que ele está bem mais confortável sobre o R&B deste álbum do que no ragga de "Lightning Strikes". Agora, só nos resta aguardar qual vai ser o próximo gênero revisitado por esse ás esquecido da Costa Oeste. O que mais ele terá de fazer para chamar a atenção e ganhar o respeito da comunidade Hip-Hop?

Aceyalone - Aceyalone & The Lonely Ones
1. Firehouse Intro
2. Lonely Ones
3. Can't Hold Back
4. What It Wuz
5. On The 1
6. Step Up
7. To The Top [Remix]
8. Workin' Man's Blues
9. Power To The People
10. Push N' Pull
11. Outro

Vídeo de "Can't Hold Back":

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Fino: Qu4rto Mundo

Ano: 2009
Gravadora: Material Corrosivo
Produtores: DJ F-Zero (todas as faixas, exceto 2 e 4), Diamantee (faixas 2 e 4).
Participações: Diego Luz (faixa 4), Rato (11) e Alan Arcanjo (11).

Como é de praxe, o fim do ano reserva sempre o maior número de lançamentos no rap nacional. O álbum de estreia do emcee paulista Fino, embora já tenha saído há algumas semanas, é um dos representantes desta leva de verão. "Qu4rto Mundo" é um disco em parceria com o produtor F-Zero, também conhecido como assíduo frequentador do Boom Bap. Propaganda besta à parte, o cara é o responsável pela maior parte do disco, com o beatmaker Diamantee respondendo pelas duas únicas batidas que não passaram pelo crivo do F-Zero.

Apresentações feitas, entremos no mundo de Fino. A primeira informação relevante é algo que já foi até tema de um artigo aqui no blog há uns meses: 70% dos samples utilizados nos beats são nacionais. Isso significa uma novidade em termos de produção tupiniquim e já diz algo sobre como o conceito do trabalho foi levado a sério. Em outras palavras, o tal quarto mundo de Fino já tem trilha sonora definida: ritmos brasileiros, de todas as formas.

O curioso, entretanto, é que a forma como os samples são trabalhos é bastante discreta. Não é uma tentativa gratuita de valorizar a música brasileira; na verdade, é bem provável que, caso você não tenha lido o parágrafo acima antes de ouvir o disco, não fique com a impressão da predominância de músicos nacionais. Os excertos são tratados de forma tradicional e não são a figura principal do álbum: o resultado final dos beats é mais importante do que as fontes utilizadas.

O pessoal que visita o blog pode fazer um paralelo imediato com "Rádio do Canibal", álbum do DJ norte-americano BK-One, que foi todo calcado em samples brasileiros. Mesmo eu tendo escrito, no texto sobre aquele disco, que era mais uma apropriação do que uma tentativa de diálogo, é bem mais nítido que o ianque tenta fazer transparecer a influência tupiniquim. Em "Qu4rto Mundo", não é o caso. O uso dos excertos é natural, e não o mote do trabalho. Talvez o único ponto convergente seja o existente entre "Mega", do registro estrangeiro, e "Violência Gratuita", que utilizam o mesmo trecho.

Afinal, o mote do disco é Fino, e sua visão de mundo. O emcee fala sobre tudo. A onipresente rua e suas armadilhas, a paixão pelo rap, as agruras de um homem comum em uma metrópole incomum. É aceitável encarar "Qu4rto Mundo" como o manifesto da filosofia de vida de Fino, e isso pode ser facilmente justificado em faixas como "Um gole de vinho, um pouco de jazz" ou "Tranquilo". Aliás, a última indica com precisão a personalidade do emcee, sublinhada pelo flow irregular, ora mais preocupado com o ritmo, ora adotando um tom mais conversacional, como se o rapper estivesse travando um diálogo com o ouvinte. E esta aproximação com o público é um dos pontos altos do registro.

A filosofia de Fino ainda encontra ecos na atenção aos detalhes e aos pequenos gestos, como explicitado, de maneira até extremamente didática, em "Tá aqui": "Amar ao próximo e a Deus é só o que você precisa / Dizer um obrigado, um por favor / respeitar os mais velhos: sim, senhora; sim, senhor / estes são gestos simples que tem maior valor". "Hino do Vitorioso", por sua vez, não perde o tom didático, mas agora a execução é melhor. Fino incorpora, guardadas as devidas proporções, o sábio Sun-Tzu e mostra sua "Arte da Guerra" para vencer na vida, com conselhos que são resumidos no refrão: "Lute pelo seu, seja um guerreiro / Mas não esqueça o principal, que é ser verdadeiro".

Mas é em momentos mais reflexivos que Fino brilha mais. "Duas" é o maior exemplo disso. Sobre um loop de saxofone cativante, o emcee confronta sua visão de mundo destilada ao longo do disco com exemplos práticos de sua própria vida. Assim, experiências de amigos, problemas cotidianos, inquietações, certezas e sonhos são postos no liquidificador e tornam-se a melhor letra do álbum. Por outro lado, a relaxante e despreocupada "Um gole de vinho, um pouco de jazz" vai pelo caminho contrário. Continua sendo introspectiva, mas é menos analítica, concentra-se em descrições do cotidiano e exala uma atitude mais otimista.

Na verdade, assim é o tal "Qu4rto Mundo" de Fino. Um espaço tipicamente brasileiro, e não são apenas os samples os responsávies por isso, e sim a própria mentalidade do emcee. Podemos considerá-lo um bom representante do brasileiro comum: cheio de dificuldades, mas ainda assim otimista, crente que o mundo melhora no próximo dia. O cara que para para refletir, mas logo depois está sorrindo com os amigos. Um cara tranquilo, que toma um vinho e ouve um jazz para relaxar e fugir dos monstros e da violência gratuita.

Fino - Quarto Mundo
1. Esboço
2. Tá Aqui
3. Esse é o meu rap
4. Um gole de vinho, um pouco de jazz
5. Rua
6. Monstros
7. Skit
8. Violência gratuita
9. Intervalo
10. Hino do Vitorioso
11. Tranquilo
12. Cada um sabe bem o que quer
13. Muro
14. Duas
15. Skit Jorge
16. Qu4rto Mundo

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Boom Bap Jams Volume I

Não, não é uma coletânea de faixas. Esta é uma seção nova do blog que eu espero manter constantemente atualizada, até porque não será algo complexo de se fazer. A proposta de "Boom Bap Jams" é postar aqui as músicas que eu tenho ouvido com mais frequência nos últimos dias. É uma forma de falar de faixas que vazaram na net ou que estão em álbuns que não necessariamente foram resenhados aqui. Enfim, dá maior liberdade do que o formato da resenha tão explorado no site. E, claro, peço a participação de vocês. Postem as faixas que têm ouvido ultimamente e assim podemos criar uma grande rede de dicas, sempre conhecendo coisas novas. Só depende de nós, certo?

A periodicidade da coluna é algo imprevisível, mas é certo que não será menos do que semanalmente, até porque não faria sentido. Como eu não sou muito bom com promessas, não vou estabelecer um compromisso, mas espero postar sempre novos volumes. Depende das mudanças no meu MP3 Player também, né?

Pois bem, vamos às músicas mais tocadas no meu humilde mp3 de 1 GB em que o botão de aumentar volume está quebrado e para mudar de faixa é necessário fazer esforço dobrado, porque o skip também está avariado. Só um adendo final: não estão incluídos na lista os dois singles nacionais postados esta semana, porque eu já falei sobre eles. Mas eles estiveram entre os mais tocados!

* Jay Electronica - Exhibit C
Geralmente evito snippets e faixas ripadas do rádio, mas li tantos elogios sobre "Exhibit C" que precisei conferir. E não me arrependo. Sobre um beat imaculado de Just Blaze, Jay simplesmente arregaça no microfone: rimas sensacionais, várias punchlines, uma voz confiante e muito carisma. Sem refrão, sem frescura. São tantas linhas que me chamaram a atenção que fica difícil escolher só uma, então vai um monte: "Comendo rappers fracos vivos e cagando cordões"; "Eu faço o diabo ficar de joelhos e recitar a oração"; "Matar um mano, roubar um mano, bater num mano, explodir / É por isso que quando você fala essa conversa pesada eu não te entendo / você soa muito bem e faz sua parte bem, mas a energia que oferece é tão pouco familiar..."; "Minha mãe me ensinou a nunca jogar a pedra e esconder a mão"; e a melhor: "Eles me chamam de Jay Electronica, foda-se / Chame-me de Jay ElecHannukah, Jay ElectRamadaan Muhammad Asalaamica RasouAllah Supana Watallah através do seu monitor".

* The Notorious B.I.G. - Miss U
Quando falamos em "Life After Death", raramente nos lembramos desta faixa. Na maioria dos álbuns, eu sempre gosto de uma música que ninguém comenta. "Miss U" é assim. As habilidades de storytelling do Biggie estão afiadas aqui: ele conta a história de três pessoas das quais ele sente falta: um amigo de infância, um parceiro de crime e uma garota metade amiga, metade parceira de crime. O instrumental cai como luva: pianos e strings dando aquele clima nostálgico e um refrão ultra-baba do 112. Mas, admitam, quem não gosta de uma baba de vez em quando?

* Buff1 - When The Winter Comes
Eu já tinha ouvido falar de que Damu The Fudgemunk aka meu produtor predileto atualmente tinha produzido um beat para o Buff1. Na última semana, finalmente a pepita foi lançada. E, obviamente, não me desapontou. As caixas continuam pesadas, o andamento continua frenético, os metais do refrão são suingados, o piano dos versos é discreto e eficiente, mas aquele sample vocal que mais parece um fantasma é o melhor de tudo. Ah, as rimas de Buff1 sobre a chegada do inverno e suas consequências físicas/psicológicas até que não são ruins...

* Life As A Shorty - Fashawn
Já tinha comentado sobre a faixa na resenha do disco do Fashawn, e ela não saiu do MP3 ainda. A batidinha quebrada do Exile e as rimas autobiográficas do moleque californiano compõem uma das melhores músicas do ano. E uma tradução está para aparecer aqui no blog.

* Marechal - Espírito Independente
Mais uma vez, algo incomum: um áudio ripado do DVD do Leando Sapucahy, no qual o Marechal faz uma participação sensacional. A versão de "Espírito Independente" numa roupagem menos ortodoxa é sensacional, mas a letra é algo fora do normal, sem contar a energia que o Marechal coloca no palco. Tive a oportunidade de conversar com o cara há algumas semanas, e o maluco é muito gente boa. E lê o nosso humilde Boom Bap, vejam só. "Os verdadeiros sabem de onde vim, reconhecem quando os versos são de coração / Um só caminho, mas que música é uma missão / Não rendo pra gravadora, quer me por sobre pressão / Não sei fazer o som do momento, eu faço do momento um som!".

* Emicida - É como um sonho
Acho que finalmente estão despertando de vez para a força que a mistura entre samba e rap tem. O cavaquinho de "É como um sonho" é muito bem-vindo. A letra do Emicida foi encarada por alguns como arrogância, mas eu vejo como um momento em que ele parou a caminhada frenética em que está metido há algum tempo para analisar a nova posição dele; daí surgiu esta faixa nova. Além do mais, todo rapper é arrogante por natureza. Gabar-se das suas habilidades líricas está presente nos melhores emcees de todos os lugares desde Afrika Bambaataa.

* Onyx - The Worst
Admito: nunca tinha reparado nesta faixa, embora sempre ouvisse falarem dela. Só o sample do Ol Dirty Bastard no refrão avisando os desavisados - "As primeiras coisas primeiro, cara, você está mexendo com o pior" - bastaria para carimbar "clássico" na música, mas foi só Sticky Fingaz e Method Man trocarem versos que o carimbo ganhou bis. O Sticky é bastante underrated: "Eu esbofeteio rappers, transformo-os em cantores / toque em algo meu e você vai ficar com nove dedos".

* Masta Ace & Edo G - Little Young
O primeiro single do projeto colaborativo dos dois veteranos segue aquela linha de rappers experientes tentando ensinar a garotada e reclamando do atual estado do rap. O primeiro verso é do Edo G falando sobre os Lil's que infestaram a cena norte-americana; já Masta Ace fala, adivinhem, sobre os Youngs. Mas, acredite, esta ideia meio tosca funciona muito bem. E a resenha deste disco está para breve.

* Cashmere The Pro - Tear Trax feat. Deacon The Villain
Outra resenha que deve sair nos próximos dias. O segundo volume do Strange Journey, do CunninLynguists, saiu, e deu bem mais espaço aos companheiros de QN5 do que o primeiro. Sorte do Cashmere, que recebeu um beat espetacular, no melhor estilo Kno - leia-se samples elegantes, cortados de forma elegante. A letra não é nada de mais, meio voltada para relacionamentos, mas quem liga com um instrumental desses?

* Fino - Um gole de vinho e um pouco de jazz
Batida do meu amigo Diamantee. Como diz o título, é bastante jazzy, com um pianinho preguiçoso ditando o ritmo do flow conversacional do Fino, que é uma característica muito marcante no estilo do cara. É meio spoken word, meio rimado, e fica bem diferente, original. Eu achei o refrão meio forçado, mas nada que eu possa reclamar. Posso estar me complicando com tanta promessa, mas acho que o texto sobre este álbum sai ainda no fim de semana. Fiquem ligados!

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

MC Arnaldo Tifu: Pra Cascá

Mais um single nacional para nossos ouvidos. Diretamente do selo Pau-de-dá-em-doido, o paulista MC Arnaldo Tifu apresenta o primeiro single do seu álbum "A rima não para", que deve estar nas ruas em dezembro deste ano. "Pra Cascá", o nome da faixa, é produzida pelo DJ Nato-Pk, também integrante do PDD.

O refrão do single já estabelece metas ambiciosas para uma só track: "Essa é pro tiozinho curtir, pras minas dançar, sacudir / pra vagabundo pirar e a pivetada pensar / essa é pra cascá". Será possível atingir todos estes objetivos? Equilibrar forma e conteúdo de tal maneira? Bom, com o beat oferecido por Nato o caminho fica bem mais fácil. Calcado num boom bap que faria DJ Premier bastante orgulhoso, o DJ emprega samples exuberantes numa estética também muito parecida com aquela que consagrou Primo. O resultado? A melhor batida que o lendário produtor nova-iorquino não produziu, das melhores do ano em terras tupiniquins, e capaz de agradar tanto as pistas quanto aqueles que preferem apenas balançar a cabeça acompanhando as caixas.

Com um instrumental tão inspirador, a espera é por uma performance condizente de Tifu. E isso ocorre, particularmente pela energia e empolgação que o emcee faz transparecer a cada sílaba que canta. Aliás, é bem provável que estes predicados de Tifu são grandes responsáveis pelo fato de "Pra Cascá" funcionar bem em qualquer ambiente. Liricamente, a meta de tocar em vários assuntos cobra seu preço por ser tão ambiciosa. De fato, Arnaldo fala de vários temas - sua filosofia de vida, mulheres, família, revolução -, mas não se aprofunda em nenhum; obviamente, alguns minutos a mais seriam necessários para tal. No fim, o single cumpre o seu papel: nos apresenta a personalidade de Tifu, os tópicos que ele deve explorar no seu disco e fica grudado nos nossos ouvidos.

Download - MC Arnaldo Tifu: Pra Cascá

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segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Nel Sentimentum: M.C.E.E.

O emcee e produtor curitibano Nel Sentimentum lançou recentemente um novo single. Aparentemente sem ser um prelúdio para qualquer projeto vindouro "M.C.E.E." é, como o próprio nome sugere, uma faixa dedicada à arte de rimar. Apesar do próprio Nel ser um beatmaker - e dos bons, diga-se de passagem, o beat da faixa fica por conta da dupla Dario e Menor.

O mais notório no single é que Nel vai além de um discurso metalinguístico: mais do que rimas sobre rimar, o ponto tocado é a questão da mensagem, algo bastante presente e sempre cobrado nos versos de um mestre de cerimônia. Não à toa, as primeiras palavras proferidas na faixa abordam justamente isso: "Muito antes dos raps, muito antes dos breaks, tinha gente nos mics, sem pickups e DJs / Martin Luther King foi lá, falou e fez, igual a Zumbi, com o regime português / na base das palavras, em articulação comandava a grande massa pronta pra revolução". Além disso, sobra para os emcees fracos, um dos temas prediletos de 11 entre dez rappers, e também uma análise mais intimista sobre o papel da arte de versar na vida do próprio Nel. Ah, e não esqueça o outro significado do título da faixa, revelado no refrão: "Música, corpo, espírito e elevação".

Com relação ao beat, é mais um com o selo CWBeats de qualidade. Impressionante como os curitibanos assumiram merecidamente o posto de fonte de instrumentais de qualidade nos últimos anos. Em "M.C.E.E.", a cortesia é de Dario e Menor, e o resultado é, adivinhem, sensacional. O clima é intimista, e dá a sensação de que Nel está pensando em voz alta, na maior tranquilidade. Atenção para os detalhes da batida: o piano que entra na hora do refrão dá um toque a mais para a faixa.

Download: Nel Sentimentum - M.C.E.E.

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Atualização: O Per Raps publicou uma resenha que cedi a eles sobre o disco do Nel, "Sentimentumlogia", que foi lançado no final do ano passado. Vale a pena conferir.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Fashawn: Boy Meets World

Ano: 2009
Gravadora: One Records
Produtor: Exile (todas as faixas)
Participações: Aloe Blacc (faixas 3 e 4), DeVoya Mayo (3), J. Mitchell (5), Evidence (7), Blu (9), Co$$ (11), Mistah F.A.B. (11), Exile (12).

Acho que o blog nunca ficou tanto tempo sem atualizações como nas últimas semanas. Culpem a faculdade, o trabalho e o feriado pelo fenômeno. É que, no auge dos meus 21 anos, um turbilhão de coisas acontece ao mesmo tempo. É uma fase meio que crucial para a transição de um jovem vagabundo para alguém com responsabilidades. É tipo o momento em que o menino encontra o mundo. Sim, eu usei minhas desculpas costumeiras e esfarrapadas para introduzi-los a "Boy Meets World", o disco de estreia do Fashawn, um jovem emcee californiano, de apenas 20 anos. O projeto foi todo produzido pelo Exile, que já virou craque em fornecer beats para moleques da costa oeste criarem clássicos.

Ops, eu disse clássico? Pois é. Mas é preciso fazer uma ressalva: "Boy Meets World" é um clássico contemporâneo, longe dos trabalhos hors-concours da golden age norte-americana. Em suma, é um discaço, mas para os padrões atuais. Não bastasse os instrumentais impecáveis de Exile, Fashawn é um rapper bastante talentoso e dinâmico. A fórmula para o álbum é um pouco parecida com a utilizada por Blu no igualmente clássico pós-era de ouro e igualmente beats-cortesia-de-Exile "Below The Heavens": rimas bastante pessoais, capazes de fazer o jovem comum se identificar facilmente.

Bom, esqueçamos Blu de lado, porque as comparações com John Barnes, embora meio que inevitáveis, já se tornaram repetitivas. Fashawn tem todas as características para fazer seu nome sem estar à sombra de ninguém: carisma, bom flow, letras com temas diversos e ótimo ouvido para beats. E, acima de tudo, sinceridade. É bastante elogiável como ele planejou seu disco todo em torno do conceito do jovem que vira adulto, do moleque que sai dos tempos de escola e precisa trabalhar, a hora da verdade, que separa os homens dos meninos. E "Boy Meets World" é um testamento dessa fase. Mais do que isso: é um manifesto para todos que estão passando atualmente por isso, ou mesmo os que já passaram. É claro, com todas as particularidades inerentes a um jovem vindo da classe baixa.

"Life as a shorty", o primeiro single, reflete bem esta ideia. Embora o título seja uma homenagem à clássica linha de Inspectah Deck em "C.R.E.A.M.", não há o previsível sample do Rebel INS. Em vez disso, um refrão cantado por J. Mitchell e rimas autobiográficas por parte de Fashawn, que mostra sua sinceridade: admite que seu primeiro amor o traía, diz que teve um monte de "pais" durante a infância, revela que seus amigos não se interessavam "por literatura, não eram bons ouvintes e não prestavam atenção, por isso andavam comigo". Mas não é só lamentação. As últimas palavras do moleque mostram outro ponto de vista: "Eu amei minha infância, apesar dos tiros / eu era bastante feliz crescendo na favela / não foi tão ruim, tive alguns pais / a única que eu não gostei foi não ter dinheiro".

Essa capacidade de relatar as desventuras dos garotos encontrando o mundo não fica só nas dificuldades. "Lupita" é uma faixa com toque latino em homenagem à menina que batiza a canção. "Samsonite Man" junta Fashawn a Blu para ambos trocarem impressões sobre suas viagens e discutir como é ficar fora de casa por tanto tempo quando se leva a vida de shows, gravações e encontros de um rapper. "Bo Jackson" traz Exile no microfone, com tanto produtor quanto emcee trocando versos de forma descontraída sobre um beat igualmente leve. "Sunny CA" é o hino à área de Fashawn, junto com os conterrâneos Coss e Mistah Fab.

Mas é quando o jovem emcee toca em aspectos mais sérios que sua estrela brilha mais. E o melhor de tudo é que o conteúdo equilibra-se de forma satisfatória com a forma. "Freedom" é um bom exemplo: não bastasse o sample de Talib Kweli no refrão, Fashawn transborda habilidade lírica nos versos, o primeiro sendo uma aula de como abusar de rimas internas e multissilábicas sem prejudicar a mensagem. "Hey Young World" é a faixa mais jazzy do álbum, quase que um resumo do conceito do álbum. O poder de "Why", seus strings melancólicos e o sample vocal ainda mais doce é resumido em uma das primeiras frases de Fashawn: "É hora de pararmos de sermos baby daddys (nota: uma gíria para pais ausentes) para sermos pais de verdade". E não esqueça a potentíssima "Boy Meets World", uma biografia mais completa do emcee.

Depois de três parágrafos longos falando sobre as proezas de Fashawn, é justo dedicar pelo menos um para o arquiteto do disco. O trabalho de Exile no álbum mostra o beatmaker ainda masi impecáveis no soul-hop tão característico dele, mas já aponta novos horizontes no trabalho do californiano. O violão latino de "Lupita" é uma das pistas que ele deixa, assim como a sombria "When She Calls", que encaixa perfeitamente no clima do storytelling de Fashawn. Aliás, o entrosamento entre emcee e produtor é evidente. Faixas como "Boy Meets World" e "Stars" mostram como Fashawn fica confortável e sabe interagir sobre os beats de Exile.

As coincidências com "Below The Heavens" são muitas: mesmo produtor, estética parecida, emcee jovem rimando sobre sua vida. Mas Fashawn mostra que não é uma cópia de Blu, e sim um artista com todas as condições para estar na linha de frente do Hip-Hop nos próximos anos. O mais interessante é que o moleque não se destaca só pelas letras, ou pelos beats: as canções, como um todo, têm qualidade, o que é bem mais difícil de se conseguir do que apenas rimas complexas ou beats matadores. Talvez o denominador comum entre os dois álbuns esteja numa simples palavra: clássico. Contemporâneo, mas ainda assim um clássico. E fortíssimo candidato a melhor disco do ano.

Fashawn - Boy Meets World
01 Intro
02 Freedom
03 Hey Young World
04 Stars
05 Life As a Shorty
06 The Ecology
07 Our Way
08 Why
09 Samsonite Man
10 Father
11 Sunny CA
12 Bo Jackson
13 Lupita
14 When She Calls
15 Boy Meets World

Vídeo de "Life As A Shorty":