quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Leia, estude, construa seu poder interior

A frase que dá título a este post é uma das mais marcantes do Guru, na época em que ele ainda era relevante e fazia parte do Gangstarr, junto com DJ Premier, na faixa "JFK 2 LAX", do álbum "Moment of Truth". E, revirando meu arquivo mental de frases do rap, não encontrei nenhuma melhor para batizar o texto a seguir. Nem só de música a gente vive, certo? Que tal falarmos um pouco sobre livros? E, para não desviar da proposta do blog, que tal livros sobre Hip-Hop?

Infelizmente, conheço pouquíssimos trabalhos em português sobre a cultura. Seja por falta de busca mesmo, seja por procurar evitar aqueles que tratam o Hip-Hop sob um viés antropológico, como um pequeno monstrinho diferente a ser observado. Meu interesse sempre repousou na música e na poesia da cultura. Portanto, apresento aqui cinco livros que já li sobre este gênero que faz a gente balançar a cabeça no metrô como doidos: "The Wu-Tang Manual", escrito pelo RZA, "Can't Stop, Won't Stop", do Jeff Chang, "Book of Rhymes: The Poetics of Hip-Hop", do Adam Bradley, "Check The Technique: Liner Notes for Hip-Hop Junkies", do Brian Coleman, e "And It Don't Stop: The Best American Hip-Hop Journalism of the Last 25 Years", da Raquel Cepeda. Infelizmente, todos só estão disponíveis em inglês, embora haja uma possibilidade fortíssima do livro do Jeff Chang ter uma edição em português.

Pois bem, falemos de cada um. É bom frisar que cada um puxa para um prisma diferente do Hip-Hop. "The Wu-Tang Manual", por exemplo, é um verdadeiro mergulho profundo na história do maior grupo de rap de todos os tempos. Escrito pelo cara que planejou toda a história do Wu e controlou com mãos de ferro o destino de todo mundo nos primeiros cinco anos de existência do coletivo, o livro explica todas as influências da banca, traz uma biografia de cada um dos membros, interpretações de algumas das letras mais famosas e, por fim, mostra um pouco das técnicas de produção do RZA (!) e de rima dos outros caras. Ali estão tratados sobre os Five Percenters (incluindo o alfabeto dos caras), explicações sobre como temas aparentemente distantes do rap como o xadrez e as artes marciais praticamente moldaram a filosofia do grupo. Depois de ler este manual, já é possível se considerar um doutor em Wu-Tang Clan. Tem até um dicionário com as gírias dos caras.

Metonimicamente saindo da parte e indo para o todo, "Can't Stop, Won't Stop" é, simplesmente, a história do Hip-Hop, desde quando ele era apenas um fenômeno sem nome por dentro de gangues latinas e negras dos anos 70, à espera para ser libertado em todo o seu potencial, até a primeira década do novo milênio. É talvez o mais difícil de ler para quem não é tão familiarizado com o inglês, mas, por outro lado, é uma ótima motivação para aprendermos um pouco a língua. Eu tive de ler com um dicionário a postos, mas não me arrependi. A obra, aliás, não fala só sobre rap, pelo contrário; dá bastante ênfase ao grafitti e ao break, principalmente no início. A invasão dos grafiteiros em galerias de arte nos anos 80 e a visita de moleques abusados do Brooklyn à Europa para mostrar seus novos passos estão entre os destaques.

E, se o rap é ritmo e poesia, Adam Bradley exemplifica bem o segundo componente da fórmula em "Book of Rhymes: The Poetics of Hip-Hop". Aqui, ele mostra todo o potencial poético do rap, um representante urbano e moderno que pode ser considerado uma nova escola entre os diversos estilos de poesia que a gente estuda no colégio. O Bradley, aliás, leciona língua inglesa, e fala com bastante propriedade, principalmente quando compara os recursos linguísticos utilizados pelos emcees e que foram explorados há alguns séculos por grandes nomes da literatura norte-americana. É um livro até bastante técnico, mas, na minha opinião, essencial para qualquer aspirante a emcee. Mostra que rap não é só rimar "jão" com "não"; é algo que, se bem explorado, pode ter um potencial muito maior e bem mais potente. E não se concentra só na escrita; tem capítulos sobre flow e ritmo bastante úteis para novos Tupacs, Biggies, KRS-Ones e Manos Browns.

Falando em nomes clássicos do rap, "Check The Technique: Liner Notes for Hip-Hop Junkies" é um prato cheio. Aqui, o Brian Coleman conversa com os envolvidos na feitura de 36 dos mais importantes discos de rap da história, escrevendo, basicamente, um making of, faixa a faixa, de todos eles. Além disso, cada capítulo, ou cada álbum, é precedido por um rápido histórico do grupo em questão e da época que eles fizeram o trabalho. Sabia que Trugoy e Posdnuous não gostavam do sucesso "Me, Myself and I" e o primeiro verso do último foi escrito pelo primeiro? Está no livro. Q-Tip e Phife falando sobre "The Low End Theory"? Bem neste livro, amigos.

Por fim, e um pouco mais específico, uma joia que eu nem sabia que existia. A Raquel Cepeda compilou os melhores artigos dos últimos 25 anos da mídia norte-americana do Hip-Hop em "And It Don't Stop: The Best American Hip-Hop Journalism of the Last 25 Years". Vocês imaginam o quão importante isto é para alguém que, bem ou mal, tenta desenvolver um trabalho parecido no Brasil? Além disso, é uma aula de jornalismo. Divididos em três décadas, os artigos trazem uma mulher fã de rap tentando entender por que ela gosta tanto do machismo de um Ice Cube no auge, um perfil do Biggie de um jornalista que esteve com ele até um dia antes da morte do rapper, uma reportagem sobre as groupies do rap, uma tensa entrevista entre Chuck D e um jornalista que criticou seu trabalho etc etc etc.

E vocês, têm alguma sugestão de livros sobre Hip-Hop? Estou aberto a sugestões para aumentar esta biblioteca, principalmente de trabalhos nacionais.

sábado, 23 de janeiro de 2010

Boom Bap Jams

O novo volume do Boom Bap Jams deveria ter saído no final do ano, mas com toda a correria da época passou batido. Porém, antes tarde do que nunca, né? Só um adendo: embora estejam entre as que mais tenho ouvido, não vou colocar nenhuma faixa do disco do yU, porque resenhei ele nesta semana e já falei sobre elas.

* Reflection Eternal - Just Begun feat. Jay Electronica, J. Cole & Mos Def
Retirada da mixtape "The RE:Union", um prelúdio para o novo álbum do Reflection Eternal, esta faixa traz dois dos caras mais falados atualmente - Jay Electronica e J. Cole - e um velho conhecido do Talib Kweli: Mos Def. Guiada por um saxofone viciante, que é o destaque da música, a posse-cut traz a antiga dupla BlackStar quebrando tudo e mostrando que ainda tem algo a ensinar para estes dois novatos. Jay Electronica parece estar rimando ainda na "Exhibit C", com o mesmo tipo de rimas e o mesmo flow - o que pode ser bom ou ruim, depende do ponto de vista -, enquanto J. Cole aproveita que a faixa não tem lá um assunto definido para ir para a sua zona de conforto - mulheres e armas - sem muita originalidade.

* X.O. - 1.1.10
X.O. foi o último membro do Diamond District a lançar seu trabalho solo. E ele o fez no primeiro dia do ano, com o apropriado título de "1.1.10". A faixa homônima abre o álbum, com produção de Oddisee, e é a primeira pancada de 2010. Com um piano tranquilo inversamente proporcional ao vigor da bateria, o beat tem a imaculada capacidade de fazer você balançar a cabeça durante quase quatro minutos, e nem lembrar de sequer uma palavra do que o X.O. disse.

* Apollo Brown - Intro (Work)
Eu li sobre este produtor em algum site gringo e o cara era super elogiado. Baixei o disco de instrumentais dele, e não me arrependi logo na primeira faixa. Misturando excertos de rádio, uma espécie de música folk e um violino que logo domina todo o beat, Apollo inicia sua viagem por batidas e samples da melhor forma possível. Ele ainda brinca com samples vocais no meio da faixa, mas o melhor de tudo é, sem dúvida, a bateria tão frenética quanto pesada.

* Arnaldo Tifu - Sei Quem Soul
Na moral, este Boom Bap Jams meio que inconsciente tem em sua maioria faixas de abertura dos discos que estou ouvindo. O "A rima não para", do emcee paulista Arnaldo Tifu, tá em rotação aqui em casa desde que chegou, há uns três dias. E a primeira faixa, "Sei quem soul" é uma das mais fortes de todo o trabalho. As rimas do Tifu são impactantes e, ao mesmo tempo, pintam quase que um retrato do rapper, uma espécie de carta de intenções, preparando os ouvintes para o que vai vir. E garanto que a voz ao fundo falando "Tifu" vai ficar na sua cabeça.

* Funkero - O Capital
Soube desta faixa do Funkero ao fazer a entrevista com ele, e logo gostei do conceito. Aqui, o emcee carioca personifica o dinheiro e faz com que o dono do mundo fale diretamente com o ouvinte. O efeito é devastador, até porque ele não só se explica, mas até tira uma onda com nós, pobres mortais otários. A letra inteira é espetacular, mas, musicalmente, o ponto alto é o refrão cheio de energia. "O mundo entrou em colapso enquanto me adoraram".

* Tres Leches (Triboro Trilogy) - Big Pun feat. Prodigy & Inspectah Deck
Sabiam que no clássico "Capital Punishment", do Big Pun, o cabeça do Wu-Tang RZA produziu uma faixa? E o que esperar do Abbott por trás dos beats na melhor época da carreira dele? Pancada, é claro. E "Tres Leches" é exatamente assim. Inspectah Deck, como sempre, rouba a cena com um verso surreal - ele também estava na melhor fase da carreira, mas Big Pun estava simplesmente imparável e não perderia o reinado no seu próprio disco. No mais, um show de lirismo e uma aula de emceein'. Destaque também para as apresentações com colagens de cada emcee antes dele rimar.

* Arnaldo Tifu - Rima na cara feat. Max Musicamente, Preto R e Dantas
Tifu de novo. Se "Tres Leches" foi uma aula norte-americana de lirismo, a posse-cut "Rima na cara" é uma mostra de que o rap brasileiro pode, sim, aliar mensagem a uma escrita imponente. O curioso é que o próprio Tifu fica meio ofuscado perante os trava-línguas de Max Musicamente e a levada velocíssima de Preto R. Mas é Dantas, sem tantos malabarismos líricos e com um flow mais tradicional, que responde pelas melhores linhas da faixa: "Fazendo barulho com meu mano Tifu / o resto que se dane, vão tudo sifu".

* Diamond District - Streets Won't Let Me Chill
O pessoal do Diamond District tem marcado presença no meu MP3 nos últimos dias, sem dúvida. "Streets Won't Let Me Chill" é, para mim, a melhor faixa do disco do grupo, o "In The Ruff". Tudo casa perfeitamente: o sample vocal gritando o título da faixa, a batida imunda, o loop simples e muito efetivo. Engraçado que muita gente acha que para um beat ser bom ele precisa ser cheio de detalhes, o que é um engano. Alguns dos maiores clássicos do rap foram feitos a partir de um loop. Como se quisesse emular a época de ouro até neste modus operandi, Oddisee acertou mais uma vez com esta faixa, que é quase cinematográfica e cairia muito bem num clipe. As rimas dos três emcees conjuram a tentativa deles sobreviverem nas ruas, mas é quando yU fala da família que o potencial da música chega às alturas. "Tudo o que eu tenho é minha filha e uma missão, entende?".


terça-feira, 19 de janeiro de 2010

yU: Before Taxes

Ano: 2009
Gravadora: independente
Produtores: yU (faixas 2, 4, 6, 8, 9, 11, 12, 14 e 15), Slimkat78 (1, 7, 8, 11, 13 e 16), Kev Brown (3), Bilal Salaam (5) e Oddisee (10).
Participações: Bilal Salaam (faixa 5), EyeQ (6 e 14), Isabella Banneker (8), ERK (12), Omun (14), Grap Luva (16), Finale (16) e OP Swamp 81 (16).

No último ano, um grupo vindo da capital norte-americana Washington foi responsável por um dos melhores lançamentos da época. O Diamond District lançou "In The Ruff" com a proposta de fazer do disco um documento de uma golden age que não existiu na cena da cidade no mesmo momento que nas mecas do Hip-Hop dos EUA. Em suas fileiras, além do produtor/emcee Oddisee, o grupo contava com dois veteranos desta cena pouco conhecida: XO e yU. Parecem dois cromossomos, mas a verdade é que o segundo lançou um disco solo tão bom quanto o trabalho do DD aproveitando o buzz do trio.

O estratagema para lançar "Before Taxes" foi o mesmo de "In The Ruff" e é uma potencial ameaça para as grandes gravadoras ávidas por ganhar dinheiro às custas dos artistas. yU lançou o álbum de graça na Internet e teve bastante sucesso. Graças a este êxito, o disco chega às lojas no começo de 2010. E, se o plano de marketing foi parecido, o estilo do trabalho segue o mesmo apresentado pelo já clássico do Hip-Hop de Washington.

Portanto, espere batidas pesadas e simples, sem grandes firulas. A proposta aqui é yU rimando como se não houvesse amanhã em beats produzidos por ele mesmo ou pelo parceiro Slimkat78. A sonoridade, como era de se esperar, remete bastante ao rap nova-iorquino dos primeiros anos da década de 1990: caixas graves, baterias retas e samples esparsos, mas cativantes. Some a isso alguns momentos mais experimentais e você terá em mãos um álbum que consegue balancear bem em sua fórmula o desejo de se manter fiel às raízes sem ser completamente pragmático.

Algo curioso em "Before Taxes" é que poucos álbuns recentemente contaram com uma sequência inicial de faixas tão boas. Logo depois da introdução, de alto nível, "Beats & Rhymes from March 25th" surge com a tal bateria simples e os samples se revezando ao fundo, enquanto yU rima sem refrões e outras distrações. Logo em seguida, duas faixas altamente cativantes. "Almost Time" segue a fórmula de batida reta e saca da manga um naipe de metais que acompanha um refrão que não sairá da sua cabeça tão cedo. O mesmo efeito pode ser percebido na suingada "Thought About It": a guitarra sampleada vai te guiar do começo ao fim, entre caixas pesadas e as rimas de yU, que ainda arranja tempo para uma cantoria à la Ol'Dirty Bastard muito bem-vinda.

O ritmo diminui com "BreakDown", com participação de Bilal no refrão, numa faixa mais sossegada e soul do que a última integrante deste combo de grande música: "Corners". O nome já sugere um pedaço de Hip-Hop hardcore, com sabor de 1996 e pronto para fazer todo mundo nas esquinas balançar a cabeça. E a proposta não fica só no nome; a batida parece saída do catálogo de um Pete Rock da vida, com os samples jazzys dominando o espectro musical e só saindo de cena para os metais do refrão.

Depois desta sequência, o álbum cai num ritmo menos surreal, mas ainda é possível extrair boas canções, como "Fine", cuja palavra que dá nome à faixa é repetida à exaustão num exercício muito parecido com a bem-humorada "Buy Me Lunchin", da dupla C.R.A.C. Knuckles. "Lunchin"
segue a fórmula de batida pesada, algo que só é quebrado na última faixa, "Brainwash". Numa sonoridade mais fácil de ser encontrada em trabalhos dos LabTechs de Detroit, a música é uma posse-cut, com nomes como Finale - coincidência ou não, de Detroit - e Grap Luva.

E, se nas produções yU mostra grande talento, no microfone ele também não faz feio. Como vocês vão poder notar nos vídeos abaixo, o cara nem parece um rapper, considerando o estereótipo do gênero. De óculos, blusão e mais parecido com você do que com um super bandido comedor de vadias, o cara traz este estilo também para sua escrita. Embora em "In The Ruff", ele tenha abusado de versos politizados, aqui ele também dá vazão a uma simples volta às origens em "Corners", ou a faixas mais calcadas em conceitos ou storytelling. Ou os dois juntos, como em "Thought About It", na qual ele conta casos de alguns conhecidos - e dele mesmo - que "pensaram" naquilo que estavam fazendo, desde o amigo que fazia de tudo para ter sucesso na música até uma felizmente curta incursão do próprio yU no mundo do crime. E olha que eu nem mencionei uma técnica apurada nas rimas e um flow intricadíssimo.

Pois bem, depois de quase um ano injustamente esquecido por aqui, "Before Taxes" tem seu espaço. Para aqueles que adoraram "In The Ruff", este disco pode ser tão bom ou até melhor. De fato, é até mais consistente, embora menos variado, do que o trabalho do Diamond District. Em comum, além da sonoridade, o próprio yU, um dos caras que eu sugiro não perder os olhos de vista em 2010. Há notícias de que um novo álbum do trio está no forno, e nunca será demais ouvir o que yU e seus amigos têm a dizer.

yU - Before Taxes
1. Before Taxes Intro
2. Beats&Rhymes From March 25 (Kick Styles)
3. Almost Time
4. Thought About It
5. BreakDown
6. Corners
7. The Up & Up
8. Close
9. Fine
10. Lunchin’
11. Native
12. Memory
13. The Rock
14. InTheReign
15. MmHmm (instrumental)
16. Brainwash

Download

Performance ao vivo de "Corners":


Entrevista com yU e Oddisee:

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Funkero: Poesia Marginal

Este blogueiro tem uma teoria pessoal de que o rap norte-americano tem como equivalente brasileiro o funk carioca. Os preconceitos das pessoas "de fora" são os mesmos: "é música de pobre, não tem conteúdo, só fala de sexo e violência". O efeito, entretanto, para os tais "pobres" também é iguais, e positivo: uma representatividade sem paralelos nas camadas mais baixas. Se um moleque do Brooklyn sonha em ser DJ ou um emcee, muitas crianças dos morros cariocas crescem tendo no funk uma manifestação artística viável para ele melhorar de vida. Um destes veio de São Gonçalo, cidade próxima do Rio, mas não se limitou ao funk: misturou rap, ragga e rock no seu caldeirão de influências. Mas manteve a essência no nome: Funkero.

No seu primeiro trabalho, a mixtape "Poesia Marginal", a cria do Jardim Catarina, escoltada pela produção de Iky Castilho, juntou músicas antigas e novas para servir como introdução ao público de um artista com propostas diferentes dentro do rap. Os mais puristas hip-hoppers provavelmente vão torcer o rosto para os batidões funks que entremeam o trabalho, mas ainda assim serão conquistados pelas faixas mais tradicionais do rapper que é fã de funk.

A entrevista publicada ontem no blog pode dar uma boa ideia do Funkero enquanto artista: viciado em livros, com técnica apurada e uma tendência a não enfeitar muito nos versos, apesar de ter condições de pinçar rimas mais rebuscadas. Entretanto, o objetivo aqui é outro: ir direto ao ponto, de forma crua e impactante. A comparação com um MV Bill no início da carreira seria coerente se o emcee de São Gonçalo se restringisse apenas ao rap e às temáticas do gênero.

Não é o caso, entretanto. E este talvez seja um dos pontos cruciais na proposta de misturar funk ao rap. Mas isso não acontece sempre. Em algumas faixas, temáticas funk são mantidas em batidas funk, como é o caso de "Piloto de Fuga" ou "Som do Tambozão", e teriam sido uma ótima chance de se testar o crossover proposto. Por outro lado, "Relíquia" usa samples clássicos do gênero carioca para resgatar fãs dos primórdios funkeiros, numa letra falando sobre esta época, com citações a MC's como Cidinho e Doca e Mr. Catra, linhas de frente do tamborzão, mas com igual capacidade de trazer mensagens fortes e reflexivas para as massas - exatamente como "Relíquia" faz, indiretamente. Aliás, este é o grande ponto do funk na mix: permite a Funkero pintar um retrato extremamente fiel do lado sombrio do Rio de Janeiro, sem se ater apenas aos temas engessados do rap.

Se existe a possibilidade de alguém não gostar dos funks - o que não é o caso deste que vos escreve, como alguém nascido e criado na Baixada Fluminense -, os raps são impecáveis e implacáveis. E os temas são diversos. Desde o hino cafajeste de "O que que essa moça tem?" até o storytelling bandido de "Geração $", na qual Iky, Max B.O. e Funkero narram um assalto a pessoas de classe média, o emcee ainda tem tempo para rimas mais políticas como "Tempo de Guerrilha" e uma crônica de um lado da Cidade Maravilhosa não tão exaltado pelo governo em "Selva Urbana", com uma ótima aparição de Pai Lua e presença garantida em qualquer lista de dez melhores faixas do rap nacional em 2009.

No fim das contas, "Poesia Marginal" é simplesmente o retrato de um cara com propostas artísticas ambiciosas, e que tem na mixtape o início deste caminho árduo para alcançar a maturidade deste som proposto. Com rimas verdadeiras e cruas e uma produção diversificada, o registro é apenas o ponto de partida para Funkero. Os próximos capítulos desta luta louvável para unir funk e rap num gênero com verdadeiro apelo para o público-alvo que tanto interessa aos dois vão mostrar se o sonho é possível.

Funkero - Poesia Marginal
01. Intro Poesia Marginal
02. Clima Quente, Sangue Frio
03. Vários Role
04. Relíquia
05. Ao Som Do Tamborzão
06. Interlude Da Gostosa Que Passa (part. Iky & Aori)
07. O Q Q Essa Moça Tem
08. Piloto De Fuga
09. Interlude Poesia Marginal
10. Nada Bem (part. Gutierrez)
11. Selva Urbana (part. Pai Lua)
12. Geração $ (part. Max B.O., Iky & V100T)
13. Aos Que Se Foram
14. Levando A Vida No Talento
15. Em Toda Comunidade
16. Interlude Lampião
17. Banditismo
18. Sangue Guerreiro
19. Fora Da Lei
20. Tempo De Guerrilha
21. Fim

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Vídeo de "Selva Urbana":

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Entrevista: Funkero

Victor Hugo de Freitas, 27 anos, passaria por qualquer turista nas ruas do Rio de Janeiro e seria visto por eles como um bom exemplo de um jovem carioca. Aliás, sua própria história de vida deliciaria os gringos ávidos por alimentar preconceitos em relação ao Brasil. Criado no Jardim Catarina, em São Gonçalo, o então moleque se apaixonou pelo funk, fez “várias merdas”, mas conseguiu dar a volta por cima. Hoje, casado e pai de dois filhos, Victor, ou Funkero, traz para o rap uma proposta ousada e que pode mexer novamente com preconceitos: a mistura entre o rap e o funk, ainda vista com reservas por muitos hip-hoppers.

Nesta entrevista ao Boom Bap, Funkero fala sobre sua relação com o funk, sua paixão pelo Nordeste e pelos livros, sua transformação como ser humano e a mixtape lançada em meados de 2009, intitulada “Poesia Marginal”. Confira e fique atento: amanhã tem resenha da mix do Funkero no blog.

Boom Bap: Eu já ouvi falar que você tem uma história de vida impressionante. Gostaria de conhecê-la diretamente de você...
Funkero: Cara, minha história é a história de alguém que é produto do seu meio, mas que não perdeu a capacidade e a vontade de sonhar, voar. Eu venho do Jardim Catarina, em São Gonçalo, e a minha comunidade é uma típica comunidade pobre. Como se ensina na escola, é "cidade dormitório" para a mão de obra que vive em São Gonçalo, mas trabalha no Rio. Meu bairro natal é cortado por uma BR, e é essa pista que traz a subsistência do bairro, sacou?

Enfim, droga à vera, violência idem. Todas as chagas do mundo moderno concentradas num bairro só. Meu irmão faleceu lá, eu cresci rodeado por esse ambiente,mas com uma paixão, digamos, improvável: os livros. Fui pichador, daí nasceu meu primeiro contato com a cultura urbana, e o resto é muita historia (risos).

BB: Também ouvi que você se envolveu com o crime, mas conseguiu dar a volta por cima. É verdade?
Cara, eu sou da pista. Fiz um monte de merda já, não me orgulho disso, não. Mas minha vivência, somada à minha imaginação, é a síntese do que eu sou. Não diria que fui criminoso, acho que eu era mais vítima, criminoso eu sou hoje, hoje eu sei o que eu ataco. Antes eu era violento, no meio de uma comunidade violenta. Hoje eu quero só paz mesmo.

Hoje eu tenho dois filhos, sou casado. Essa nova fase me faz ver as coisas sob uma nova perspectiva, mas ainda sou o mesmo maluco de sempre, acho que mais maluco ainda (risos). A psicose só aumenta com o tempo, li em qualquer lugar que isso se chama neurose de guerra, vai saber (risos). Mas estou mais focado, pois estou sonhando, mas com os pés no chão, e estou pensando grande. Antes tinha poucas pretensões; o que mudou é que eu quero o agora, quero o ontem, quero o mundo, quero me aperfeiçoar.

BB: Você comentou que sua paixão por livros te ajudou. Pode explicar melhor? Como começou essa paixão? Tem algum livro que te marcou a ponto de promover estas mudanças que você disse?
Não tem um, tem um milhão (risos). Eu li muito na infância, lia muita revista de terror, Calafrio e outras do gênero. Lia Conan, Marvel, li muito Sítio do Pica-pau amarelo. Na adolescência eu lia muito os livros da série Vagalume, tá ligado? Capitães da areia (do autor Jorge Amado) eu pirei, aí comecei a ler sobre o Nordeste, os sertões, Grande Sertão Veredas. Lia muito Sherlock Holmes também. Lia o que eu via na frente.

BB: Falando sobre o funk, é notória a influência do gênero nas suas letras, nas suas bases etc. Conte um pouco a sua relação com o funk.
Eu cresci no bairro do DJ Cabide, meu pai mora na rua do antigo Clube Tiradentes, onde tinham os famosos bailes da Gota Cerol Fininho. Desde criança eu já tive essa relação. Eu gostava muito de rock quando tinha uns sete, oito anos. Iron Maiden, as capas e tal. Depois de um tempo descobri o funk, através dos vinis da Furacão, Live, A Gota, Cash Box, Soul Grand Prix. Eu sou de São Gonçalo, né? Berço do funk, Claudinho e Buchecha...

O baile era na minha casa! O primeiro que eu fui foi na matinê do Tamoio,várias equipes, mas eu nem sonhava em ser musico nessa época, queria era arrumar um qualquer e curtir. Eu comecei fazendo rap mesmo, nas batalhas de freestyle, mas trouxe comigo essas influencias de menino. O funk rodeou minha infância e adolescência e é uma influência fortíssima. Eu sou um rapper que é fã de funk, na real (risos).

BB: Eu percebi que você faz várias referências ao funk nas suas letras, como nomes de MC’s e equipes de som. O funk ainda é visto com maus olhos por muita gente, inclusive dentro do rap. Você já teve problemas com isso?
Com certeza! As pessoas torcem a cara até com o meu nome, mas eu já fiz desse jeito pra isso mesmo, confundir, achar uma coisa e ver outra. Eu sou funkeiro, tenho conteúdo, técnica e paixão. Querer me rotular num padrão é burrice, eu não tenho. Sou um favelado cdf, bandido, roqueiro, funkeiro, tudo no mesmo lunático.

BB: E o que você acha desse preconceito do Hip-Hop com o funk, sendo que, na verdade, os dois têm muito mais semelhanças do que diferenças?
Cara, preconceito é ruim, né? Mas eu entendo, tem um monte de gente fazendo funk ruim, isso colabora com o preconceito massificado em cima do funk. Mas existe um monte de rap ruim também, não dá para generalizar. Quem faz isso está viajando.

BB: E quais as semelhanças entre os dois gêneros que você visualizou para inserir na sua técnica como emcee?
O BPM é diferente e o jeito de compor também. O funk abusa da linha melódica, o cru, não tem nada além da percussão. Mas eu acho muito parecido com o ragga, por exemplo, a levada no contratempo. A temática é a mesma e eu acho muito parecido com o bounce, por exemplo, gosto de Miami Bass,os synths. E é uma tendência de mercado também, por que não aproximar as duas linguagens? Eu faço rap no funk e funk no rap. Acho que eu tento achar um meio termo, onde as duas culturas se encontram.

BB: Esta era a minha próxima pergunta. Para você, qual é o ponto de convergência dessas duas culturas?
No faça você mesmo, que está presente no funk e no rap. O principal ponto de convergência é na poesia, crua, sem rebuscamentos, aprendida fora da escola, e na habilidade do MC de comandar a plateia. O cara que é bom no rap comanda a multidão, o cara que é bom no funk, também. [Também há semelhanças] no equipamento, muitas vezes precário, e na facilidade de ser popular sem precisar estar no grande jogo empresarial. É uma parada meio tribal até, que o rap tem, o funk e o samba também. Ragga, grime, embolada, acho todos primos.

BB: Você falou da recepção do rap em relação ao seu som, mas e o pessoal do funk, como te recebe? Eu vi alguns flyers de apresentações suas, você vai se apresentar numa festa essencialmente funk. Como que é essa relação?
Eu já tive a oportunidade de me apresentar ao lado dos maiores nomes do funk, os caras adoram o rap, têm um respeito imenso pela cultura e pelo som, e eu canto uns funks também, né? Aí fica fácil, tenho vários sons no tambor.

BB: Eu tenho uma teoria de que o rap nos EUA é o equivalente ao funk aqui do Rio. Tomou de assalto a juventude, seu mainstream é criticado pelas mesmas coisas, gera um dinheiro tremendo sem precisar da mídia etc. Enfim, por que você acha que o funk cresceu tanto no Rio, em vez do rap? Você acha que ainda dá para o rap competir em termos de espaço com o funk no Rio? Como você vê toda essa situação?
Cara, eu acho que a gente não tem que competir com o funk, mas se aliar a ele, adicionando o que tem de bom e deletando o que é ruim. Concordo com sua teoria, acho a temática do funk parecida com a de muito rap gringo, e a espontaneidade também. Aí está o ponto crucial: espontaneidade. É o que eu tento aprender. O funk faz parte da história dessa cidade, e é muito próximo da levada do samba. Acho que isso foi o fator preponderante para a assimilação desse gênero e a “abrasileiração” dele também. Antes era funk, depois virou funk carioca, e é um reflexo da nossa sociedade. Mostra o que a gente tem medo de ver, assim como o rap, mas o rap faz na grande maioria como denúncia. O funk faz sem pretensões de educar ou mudar, só relata. Totalmente válido, é música, não é? Eu acho que cada vez a gente aproxima mais o rap e o funk. Vai chegar o dia que não vai ter essa barreira imaginária que nós criamos, se Deus quiser.

BB: Mesmo fora da mídia, o funk, como movimento, até na questão financeira, é muito mais organizado e rentável do que o rap hoje em dia. Já se expandiu bastante das fronteiras do Rio, inclusive. Você falou sobre integração entre os dois gêneros. O q você acha que o rap pode aprender com o funk nesse sentido, sendo que este é talvez o ponto fraco do rap no Brasil atualmente?
O funk tem gente que só quer ir ver, fazer parte, e tem as pessoas que são só simpatizantes, essas são as que movimentam a grana. Para você ir ao baile você não tem que conhecer nada de som, só querer. No rap, todo mundo faz também, e as pessoas se sentem mais oprimidas de chegar sem saber nada sobre o assunto. Na minha visão, a gente pode aprender isso com o funk. É legal que as pessoas comprem seu trampo, não precisa "ser" do rap para isso. Quem quiser, vem que já é! Assim que tinha que ser. Nós estamos em 2010, as pessoas não curtem mais uma coisa só. São os novos tempos. Temos que nos adaptar, para não dar pau na máquina (risos).

BB: Sobre a mixtape, fale um pouco sobre o processo de criação das musicas, o conceito por trás da mix, quando começou a ser feita , seu objetivo com o trabalho etc.
Eu tinha um monte de funks, um monte de rap, um monte de ragga, de épocas diferentes. Resolvi fazer uma mixtape pra divulgar o trampo e o Iky Castilho fechou comigo nessa empreitada, a Café Crime produziu o trampo, o DJ Negralha, que é um grande parceiro, fechou de mixar. A gente quis movimentar a cena, fazer andar o barato, sacou? E me lançar, é o meu primeiro trampo, e teve uma receptividade muito maneira, rompeu um monte de tribos e estigmas. É um caldeirão, tudo misturado.

BB: E as participações, como foi que rolaram?
Algumas faixas já eram parcerias minhas, com a Digital Dubs, com o Gutierrez, a “Selva Urbana” era eu, o Tapechu e o Zé Bolin. Infelizmente, ele partiu lá pra cima sem gravar, e a gente colocou a voz dele de sample, pra homenagear o amigo. Foi um processo relativamente rápido. O Iky foi o maestro que dirigiu o bang todo, gravou, mixou.

BB: Eu notei que, apesar de você ter feito muita merda, como você disse, não há uma obsessão pra falar sobre crime e tal. Mesmo nas faixas em que você envereda por este caminho, a abordagem é diferente, mais abrangente. Esta decisão foi consciente ou é um reflexo do cara que você é hoje?
Acho que é conhecimento de causa mesmo. Eu falo sobre isso sem pudor, na real, como todos os outros assuntos. Isso traz simplicidade à temática. Eu faço musica, sempre fiquei encucado com esses discos que mantêm a mesma temática do inicio ao fim. Acho que demonstra pouca técnica, tanto musicalmente como na escrita. Sou CDF, mano. Quero fazer bem diferentes temas, abranger minha poesia. O mundo não e só crime, não e só noitada, não e só protesto, é tudo isso ao mesmo tempo. Eu tento manter a minha antena limpa, para captar tudo. Música fala da alma humana, como você vai classificar sua alma, o que você sente, num tema só?

BB: Fale um pouco sobre o clipe de “Selva Urbana”. Qual era a ideia que você quis passar através dele? Como foi o processo para gravar?
Eu participei do longa “L.a.p.a” e firmei essa parceria com o Emílio Domingos, um dos diretores do filme e que dirigiu o clipe, junto com o Gregório Matriz, Osmose Filmes. A música da mix que mais tocou foi “Selva Urbana”, foi natural querer fazer ela. A ideia é de selva, eu gravei na Floresta da Tijuca. E selva urbana ...esse contraste da mata com as ruas do centro, da selva de Deus e da nossa selva. Gravamos em um dia, eu e Pai Lua, e mais um dia eu sozinho. Nós gravamos, eu sozinho, no Mirante Dona Marta, no Cristo e em Santa Tereza. Com o Pai Lua, nós gravamos na Avenida Presidente Vargas, no Beco da Sardinha, Praça Mauá e Lapa. Gravamos de carro imagens da Perimetral, Leopoldina e Mem de Sá.

BB: A faixa “Banditismo” é precedida por um interlúdio intitulado “Lampião”, e fala bastante sobre este cenário nordestino. Qual foi a sua inspiração para estas duas faixas? Como a história de Lampião te inspira?
Sempre gostei de literatura nordestina. Meu primeiro CD foi Chico Science, né? Eu queria falar sobre Lampião, que é um assunto que sempre me fascinou. O crime lado a lado com a fé, a revolta aliada com a disciplina, enfim. Gravei a “Banditismo”, que é do Chico e Nação Zumbi, e fizemos o interlúdio com as vozes do filme "Baile Perfumado" e umas cantigas sobre Lampião. Foi minha humilde homenagem pro Nordeste.

BB: Como você avalia a importância da cultura nordestina no contexto brasileiro? Muita gente ainda vê com preconceito, né?
É importantíssimo a gente voltar os olhos pro Nordeste do Brasil, foi aonde o colonizador chegou primeiro, né? A cultura popular nordestina é alvo de preconceitos mil, mas é encantadora também. Literatura de cordel, maracatu, embolada, repente, forrozão bolado, só coisa boa.

Eu sou influenciado pelo Rio, e o Rio tem muito de Nordeste. Os nordestinos fizeram o Rio, a mão de obra das construções imponentes nas grandes cidades tem braços nordestinos. O rap do Nordeste também está porrada: Costa a Costa, Rapadura, Inquilinus, Daganja, tem muita coisa maneira.

BB: Em “Relíquia”, você faz várias referências à cena do funk. Qual foi sua motivação para fazer esta música? Aquele pessoal citado na faixa te influenciou? Qual a importância deles para você?
Essa faixa foi uma homenagem pra aqueles caras que eu ouvi na minha infância, que fizeram parte da minha vida e que me influenciam temática e musicalmente. Eu, na real, faço inúmeras citações de letras antigas de inúmeros artistas. Aquele sample clássico... Tudo é feito na intenção de levar a pessoa que ouve praquela época, praquele tempo. Além disso, era pra ter uma faixa com meu nome no refrão! (risos).

BB: E o que podemos esperar do Funkero em 2010?
Eu estou finalizando as faixas do meu disco novo, que se chama “Em Carne Viva" e vai ter varias participações nas produções, com produção musical de Iky Castilho. Vai ser lançado pela Café Crime, em time que está ganhando jogo não se mexe. E estou muito contente com o resultado que estamos tendo, acho que vai ser foda esse disco. Estou bem focado e escrevendo bastante. Se Deus quiser, a gente bota o disco na rua no segundo semestre de 2010.

BB: Qual vai ser o conceito do disco? Já tem alguma participação confirmada?
"Em Carne Viva" vai ser minha autobiografia nos versos. Vai ser só eu. Nos beats, tem uma galera, chegando mais perto a gente vai soltando os nomes. Eu ainda não sei das faixas que temos, qual entra e qual não. Estamos selecionando.

Eu tenho dez músicas prontas, com voz guia. Tem mais algumas para aprontar, outras para escrever. É um processo que eu gosto bastante, escrever, apagar tudo, reescrever, gravar, aí jogar tudo fora e começar de novo (risos). Estúdio é um habitat onde eu fico à vontade.

O disco está bem louco, tem beat de clube, tem umas músicas bem punk rock, tem umas mais under. Os funkão de sempre. Vai ser bem variado musicalmente, e tematicamente também. Tem uma música que eu fiz para o meu irmão, que emociona bastante quem a ouve. Tem uma que chama “Luz, câmera, ação”, que eu faço os versos com nomes e cenas de filmes. Tem “O Capital”, que eu faço em primeira pessoa, como se o dinheiro fosse o narrador do verso. Essa última a galera pode ouvir no player que tem no www.cafecrime.blogspot.com. Tem outra que fala de madrugada, outra de pixação, outra sobre tiroteio – tinha que ter (risos). Enfim, tá louco, cara.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Tradução: Jay Electronica - Exhibit C

Depois de merecidas férias, o Boom Bap volta às atividades com a tradução de uma das melhores músicas de 2009: "Exhibit C". O emcee Jay Electronica se juntou ao produtor Just Blaze e abençoou o mundo do Hip-Hop com esta faixa. Rumores apontam que a dupla está enfurnada em algum laboratório maluco preparando o álbum de estreia do Jay Muhammad Asalaamica Rasoul Allah Supana Watallah Electronica. Se o primeiro single é um indicativo de algo, é melhor prepararmos mentes e corações para um clássico absoluto.

Como muitos dos emcees mais técnicos, Jay usa algumas referências bem obscuras e que eu tive dificuldade em identificar. Fiz uma série de notas explicando algumas destas referências, e a lista está disponível depois da tradução. Qualquer contribuição ou correção para entender melhor a letra é bem-vinda.

Exhibit C - Exibição C

Quando eu estava dormindo no trem
dormindo na Meserole Ave embaixo de chuva
sem nem mesmo um único pedaço de pizza no meu nome
orgulhoso demais para implorar mudança, dominando a dor
quando os caras de New York estavam chamando os rappers do sul de fracos
e depois imitando nossas gírias
eu costumava ter umas fantasias, ouvir um pequeno sinal
a voz de um anjo dizendo-me o meu nome
dizendo-me que um dia eu vou ser um grande homem
me transformando com o Megatron Don, cuspindo chamas
comendo rappers fracos vivos e cagando cordões
eu não acreditei nisso na época, cara, eu estava desabrigado
lutando, jogando dados, fumando maconha nas esquinas
tentando achar o sentido da vida em um copo de Corona
até os Five Percenters chegarem num cara e informá-lo
"Oo você constrói ou destrói, de onde você veio?"
"Dos prédios de Magnolia, na favela do 3rd Ward"
"Hmm, é incrível que você rime deste jeito
e como você brilha como se tivesse crescido em um santuário no Peru"

Questão 14, lição muçulmana 2: mergulhe fundo, civilize um 85er
eu faço o demônio ficar de joelhos e dizer nossa oração
Abracadabra! Você está andando com a lenda viva
um salve para Lights Out, Joseph I, Chewy Bivens,
um salve para Baltimore, Baton Rouge, minha crew em Richmond
enquanto todos discutiam quem era a verdade como judeus e cristãos
eu estava em Cecil B, Broad St, Master, North Philly, South Philly, 23rd, Taskers
6 Mile, 7 Mile, Hartwell, Gratiot
onde os caras realmente pegariam um caminhão U-Haul
ligar os raios altos
dirigir no meio-fio até um churrasco e ir para a traseira tipo "qual foi?"
"matar um mano, roubar um mano, pegar um mano, ficar chapado"
é por isso que quando você fala aquelas coisas pesadas eu nunca te entendo
você soa muito bem e faz bem a sua parte
mas a energia que você oferece é tão pouco familiar, eu não te sinto

Nas me chamou no telefone e disse "o que você está esperando?"
Tip me mandou um tweet e idsse: "o que você está esperando?"
Diddy me manda uma mensagem a cada hora dizendo: "quando você vai mandar aquele verso? Cara, você está demorando"
Então agora eu estou de volta, rimando como se estivesse passando no teste do polígrafo
como Rev Run andando de Adidas na Hollis Ave
aquele estilo FOI, Marcus Garvey, Nikki Tesla
Eu te dou um choque como uma enguia, sentimento elétrico, Jay Electra

Eles me chamam de Jay Electronica
foda-se, chame-me de Jay ElecHannukah
Jay EleYarmulke
Jay ElecRamadaan
Muhammad Asalaamica Rasoul Allah Supana Watallah através do seu monitor
minha Uzi ainda pesa uma tonelada, cheque o barômetro
eu sou mais quente que a porra do sol, cheque o termômetro
eu estou trazendo a matemática antiga de volta ao homem moderno
minha mae me disse: "nunca jogue uma pedra e esconda sua mão"
eu tenho uma família, você tem um monte de fãs
é por isso que as pessoas me apoiam como o homem de Verizon
eu meto por trás e depois vou embora e então arquiteto o plano
em Londres, fumando, de boa enquanto ando de bonde
oferecendo comida crua para leões disfarçados de ovelhas
e, na hora que eles ficarem com os bancos quentes
e mandarem todos os comparsas para me pagarem do topo da árvore
eu vou estar relaxando em Tweetstock, trocando ideia com milhões, minha luz é brilhante

Notas:
* Corona é uma cerveja mexicana bastante apreciada nos EUA;
* Megatron Don é um apelido de Just Blaze, utilizado inclusive em seu Twitter;
* 85er é alguém alheio aos ensinamentos dos Five Percenters. A expressão "civilize a 85er" foi cunhada pelo emcee do Brand Nubian, Grand Puba, na faixa "Wake Up", e depois sampleada pelo grupo Da Lench Mob, na faixa "Buck Tha Devil", e pelo grupo Poor Righteous Teacher, na faixa "Gods, Earths and 85ers". Na verdade, a linha de Jay Electronica - "dip diver, civilize a 85er" - é uma paródia da de Puba - "So I dip dip dive-a, civilize a 85er";
* U-Haul é uma empresa de aluguel de caminhões e trailers;
* O polígrafo é um aparelho mais conhecido como detector de mentiras;
* FOI é uma sigla para Fruit of Islam, o braço armado da Nation of Islam, uma organização muçulmana norte-americana;
* Nikki Tesla foi um cientista sérvio radicado nos Estados Unidos famoso por ter proporcionado vários avanços no campo da eletricidade e do eletromagnetismo. Entretanto, com o passar dos anos, passou a ser taxado como um cientista louco, e morreu no ostracismo. Inclusive, a capa do single de Jay Electronica é uma foto do cientista;
* Hannukah é um feriado judeu que celebra o reestabelecimento do Templo Sagrado em Jerusalém. Em português, a palavra significa estabelecimento ou dedicação;
* Yarmulke é o nome do chapéu utilizado pelos judeus, mais conhecido aqui como quipá;
* Ramadaan é o nono mês do calendário islâmico, no qual os muçulmanos jejuam por cerca de 30 dias;
* Verizon Man é o garoto propaganda da empresa Verizon Wireless. Entretanto, não tenho certeza se é realmente essa a referência de Jay Electronica.