quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Elo da Corrente: Sonho Dourado da Família

O Natal é daqui a dois dias, mas um dos meus presentes de fim de ano foi lançado ainda no Indie Hip-Hop deste ano. O Elo da Corrente, considerado por este escriba o melhor grupo de rap no Brasil, lançou um EP, intitulado "O Sonho Dourado da Família", contendo sete faixas, corroborando a posição dos caras como pertencentes à elite de letristas em terras tupiniquins - não só no rap, mas em qualquer gênero.

De fato, o lançamento do EP não poderia ter sido em melhor hora, particularmente. Cabe aqui uma história pessoal deste humilde blogueiro para explicar a euforia. No fim do ano passado, passei as férias num paraíso fluminense chamado Angra dos Reis. Entretanto, nos primeiros dias de viagem, para honrar o meu azar, me deparei com chuva e frio. Lá pelo quarto dia, o sol finalmente deu as caras. E este vacilão, como se nunca tivesse visto na praia na vida, passou o dia inteiro no sol, sem protetor solar. Resultado: queimaduras de primeiro grau em quase toda a parte superior do corpo e fim de diversão. A casa onde fiquei era alta, e, da varanda, dava para ver o mar. Enquanto o resto do pessoal estava lá embaixo se divertindo, passei os dias naquela varanda, olhando a praia e ouvindo, adivinhem, "Após Algumas Estações", do Elo.

Posso dizer com segurança que, apesar de já ter ouvido incontáveis vezes o álbum, só naquele momento eu pude compreender todo o trabalho e me fez admirar ainda mais o trio formado por Caio, Pitzan e PG. A poesia inigualável dos emcees, diferente de tudo que vemos no Brasil, e as batidas bem cuidadas foram grandes companheiras naquele momento. Agora, em 2009, retornarei a Angra com o novo EP no MP3. Só espero não ficar todo queimado de novo para ouvir o trabalho.

Depois dessa pequena e triste história pessoal, vamos ao EP. "O Sonho Dourado da Família" é uma continuação do estilo do trio do Elo, com rimas muito além da impressão que temos ao ouvi-las pela primeira vez e um vocabulário riquíssimo. Tudo isso sem descuidar da parte musical: as levadas são pontuais e as batidas, inversamente proporcionais à exuberância dos versos. Excetuando a faixa título, com timbres tão ensolarados quanto este final de ano, a produção segue o caminho do submundo, com excertos sujos, batidas graves, numa mistura entre os pancadões Wu-Tang e a sujeira de um Madlib da vida.

Quanto aos versos, é até difícil falar sobre o trabalho, porque, assim como aconteceu comigo com "Após Algumas Estações", pode ser necessário um bom número de audições para chegarmos à plenitude da mensagem. Um exemplo disso é "Um Filme", um storytelling super detalhado no qual Pitzan e Caio interpretam dois personagens: o último precisa levar uma sacola para o primeiro, que irá se encontrar com o consumidor. O conteúdo não é revelado, embora o tom de urgência e sigilo sugira algo que não deva chamar muita atenção das pessoas. Aí, cabe a cada ouvinte interpretar o som: eu fico com a hipótese de ser uma metáfora ao trabalho de música dos caras; algo meticuloso, que deve ser feito com cuidado e atenção, sem se envolver com as pessoas erradas; talvez também um alerta bem sutil para a situação do artista independente, e toda a produção artesanal, desde a gravação do disco até a venda, que alguém nesta posição precisa enfrentar.

Outros temas não muito comuns são abordados por Caio e Pitzan. Em "A mãe", eles relatam a história de uma escrava vinda para o Brasil e todos os percalços que ela enfrenta em terra brasilis: o trabalho cruel e forçado, o estupro por parte do senhor etc. Até mesmo uma decepção com aqueles que deveriam ajudá-la está no script: depois de fugir para um quilombo, ela percebe que até lá a escravidão está presente, o que a leva ao suicídio. É claro que este é apenas um resumo da história; os emcees a relatam de forma muito mais poética e sutil.

Entretanto, eles mudam de marcha em "Democracia Aonde". Sai o discurso sutil e detalhista para versos que vão direto na jugular. O título já diz bem o teor da faixa, e as rimas correspondem às expectativas numa plétora de frases que logo vão estar na boca dos fãs: "Demoracia é o povo exercendo soberania / Mentira, isso não passa de sonho e fantasia / Olhe a sua volta, os valores trocados / tá tudo escancarado...". Adicione ao assunto sério uma seção de strings sinistras e você tem o tema ideal a ser tocado quando os corruptos forem para seu devido lugar.

Nos quase 20 minutos de audição, o que fica claro é que o Elo continua num caminho único, lapidando cada vez mais seu talento e estilo. Prova disso é "Sonho Dourado da Família", herdeira direta de faixas como "Sementes de Luz" e o "O Amanhecer", tanto na temática quanto nos instrumentais belíssimos. Com dois emcees extremamente competentes e capazes de gerar reflexões mesmo no verso mais simples, o Elo continua na linha de frente do rap brasileiro, com um feito difícil para qualquer artista: equilibrar música e mensagem sem perder qualidade em nenhum dos dois fronts.

Elo da Corrente - O Sonho Dourado da Família
01. O Sonho Dourado da Família
02. Se Faz Necessário Voar
03. Um Filme
04. A Mãe
05. Democracia Aonde?
06. Madrugada
07. Fim

Vídeo de "Se Faz Necessário Voar" ao vivo:


PS: O Boom Bap aproveita para sair de férias e voltar - de preferência sem queimaduras de primeiro grau - a partir de 4 de Janeiro. Desejo a todos um bom Natal e um 2010 de sucesso.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Kamau: 21|12 + Só(remix) + Resistência(remix)



É sempre assim. Quando o ano está acabando e nós já começamos a revisitar tudo o que aconteceu no rap durante o ano, os trabalhos começaram a aparecer no Brasil. No caso de Kamau, a data tem um porquê: o cara completa 21 anos de skate e 12 de rap. Portanto, nada mais justo que celebrar o marco no dia 21/12 com o que ele sabe fazer de melhor: música. É assim que chegam a nossas lentes e ouvidos o vídeo do remix de "Só", música do álbum "Non Ducor Duco", e os singles "21|12" e "Resistência", esta última outro remix, desta vez com a preciosa participação da emcee, revolucionária, ativista e top 10 do Boom Bap Invincible.

Comecemos pelo vídeo. Dirigida por Fred Ouro Preto, responsável também pelo audiovisual de "Triunfo", do Emicida, a película traz um Kamau só - como sugere o nome da faixa - pelas ruas e noites de São Paulo destilando uma letra reflexiva, que funciona quase como um lembrete para o artista que tá na correria tentando vencer nessa coisa chamada rap, mas podem se aplicar a qualquer outra vertente de nossas vidas. Entretanto, vindos de um cara que já tem no currículo uma grande gama de experiências dentro do gênero, os versos resumem uma cartilha para os iniciantes nos trabalhos: foco, convicção e nada de esperar pelos outros. Em tempo: o beat, autoria do curitibano Nave, é espetacular. O sample todo picotado induz a cabeça a movimentos regulares, e aquela variação no refrão é a cereja no bolo.

Chegamos aos singles. "21|12" é a faixa inédita, feita especialmente para esta data. E, considerando o significado dos números para Kamau, é de se esperar uma carta aberta expondo os sentimentos do emcee para os fãs. A batida, cortesia de Renan Samam, já dá o tom para o clima confessional que nos aguarda. No primeiro verso, ficamos sabendo como começou a paixão pelo skate; no segundo, é o amor pelo rap que toma forma e faz Kamau precisar decidir entre os dois: a escolha pelo microfone com certeza agradou a muita gente nesse Brasil inteiro. Mas o mais legal é a introspecção que o cara atinge na letra. É como se ele estivesse conversando contigo ali do lado, contando a história dele. Também não se pode deixar de mencionar os scratches brincando com o título da faixa.

Para fechar, o remix de "Resistência" traz um verso inédito da americana Invincible. Enquanto Kamau expande o tema de resistência para diversas áreas, tendo o rap como ponto de partida, a emcee sente-se à vontade para abrir sua caixa de ferramentas revolucionária para atacar os falsos revolucionários, que "falam sobre trabalhadores como se todo dia fosse 1º de maio".

Bom, dá até para dizer que é Papai Noel que traz para os fãs de rap que se comportaram direitinho um final de ano movimentado. Se pensarmos assim, o single de Kamau é, sim, um ótimo presente para todos nós. E amanhã, para fechar a temporada 2009 do Boom Bap, um texto sobre o novo EP do Elo da Corrente, o outro presente de Natal do rap brasileiro.

Ouça "21|12"
Ouça "Resistência (remix)"

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Bekay: Hunger Pains


Ano: 2009
Gravadora: Coalmine Records
Produtores: The Returners (faixa 1), The Alchemist (2 e 15), Marco Polo (3), Shuko (4, 5 e 10), Alkota & Unknown (6), Illmind (7), DJ Babu (8), Contagious (11), BeanOne (12), Street Orchestra (13) e Jonathan Rotem (14).
Participações: DJ Revolution (2), R.A. The Rugged Man (3), Heltah Skeltah (7), Masta Ace (8), Wordsworth (10), Saigon (13), Inspectah Deck (13) e Dilated Peoples (15).

Com saudade daquele som pesado e agressivo típico da Nova Iorque dos anos 90? Pois o underground norte-americano continua tentando suprir esta demanda. A nova tentativa é "Hunger Pains", o álbum de estreia de Bekay, um nativo do Brooklyn que cresceu em meio a toda aquela efervescência que caracterizou o início da década passada como a época dourada do rap. Agora um homenzinho, é a vez de Bekay tentar resgatar a velha essência e trazer NY de volta ao topo do jogo, local onde esteve por tanto tempo.

Tudo bem, o parágrafo acima é bem clichê, mas quando você começar a ouvir "Hunger Pains", vai perceber que é um clichê no bom sentido. Carregando a honra de ter sido o último cara a gravar com o lendário Ol' Dirty Bastard, exatamente uma semana antes da morte do membro do Wu, o jovem Bekay tem uma levada bastante agressiva, rima como se estivesse com raiva do mundo e não pudesse perder um segundo sequer do precioso tempo com bullshits alheias. E é justamente esta determinação, esta postura "estou-numa-missão-e-nada-vai-me-parar" que traz brilho ao disco e transforma BK numa das boas revelações deste 2009 tão prolífico.

A carta de intenções de Bekay surge logo após a obrigatória introdução, na forma de "I Am". Sobre o piano jazzy de Alchemist, o nova-iorquino compartilha conosco sua visão do Hip-Hop, ao mesmo tempo em que relembra características antigas e se auto-intitula a própria cultura, comparando-se com diversos nomes consagrados do gênero e outros elementos típicos do movimento. Quando ele garante, com sua voz estrategicamente elevada, que é "duas turntables e um microfone", qualquer purista hip-hopper se rende ao moleque.

Mas a conquista definitiva vem na faixa seguinte, que conta com a participação de ninguém mais ninguém menos que R.A. The Rugged Man, também conhecido como ofuscar qualquer artista que o convida para rimar. "Pipe Dreams" é uma faixa conceitual, na qual Bekay é um jovem artista tentando ser contratado pela gravadora do diretor interpretado por R.A. Desnecessário dizer que é um grande dedo do meio oferecido às labels, mas de uma forma extremamente criativa. R.A., velho de guerra no que diz respeito a ter divergência com gravadoras, naturalmente rouba a cena, oferecendo mundos e fundos ao jovem aspirante a rappers, enfatizando de que vai usar o fato de Bekay ser branco para projetá-lo como o novo Eminem e já vislumbrando a produção do disco. "Eu vou te arrumar cinco beats do Kanye West, outras duas do Lil'Jon, para o mercado do Sul". A resposta do nova-iorquino é certeira. "Primeiro de tudo, eu não vou lançar lixo, cara / (...) e se você quer me comparar ao Eminem, foda-se você e foda-se ele também / e quem disse que quero agradar o mercado do Sul? É só eu que acho, ou todas as batidas do Lil'Jon soam a mesma coisa?".

A partir daí, o álbum engrena numa sequência de batidas fortes e rimas mais agressivas ainda. A produção é claramente influenciada pela era de ouro do rap, com muitos scratches, colagens daquela época e toneladas de samples utilizados. Apesar de Bekay contar com pesos-pesados nos beats, como Marco Polo, Illmind e DJ Babu, é Shuko o responsável pela maioria das faixas e pelos momentos mais marcantes. "Bloodsport" e "Young" são duas produções do beatmaker que mostram um estilo Premier nos cortes dos samples e, obviamente, casam perfeitamente com a abordagem de Bekay. O único momento em que a pancadaria sonora dá um tempo é em "Brooklyn Bridge", de Babu, uma homenagem ao Brooklyn, com participação do veterano Masta Ace. Até mesmo Bekay abaixa alguns decibéis do seu flow para encaixar no clima da faixa.

Apesar de a força de Bekay ser enfatizada aqui, fica claro que ele não é apenas um emcee com rimas de batalha sobrando no caderno de rimas. Ele é capaz de diversificar seus temas para não tornar o álbum repetitivo. "Rapstar" segue o exemplo de "Pipe Dreams" e utiliza outro ângulo para falar das agruras de um jovem tentando vencer no mundo do rap sem fazer concessões a gravadoras. "Pops" é outro momento mais introspectivo: uma carta tensa de Bekay a seu próprio pai, capaz de fazer com que muitos se identifiquem com algumas partes da letra. Mas é realmente nos bate-cabeças que o jovem nova-iorquino se encaixa, especialmente quando ele troca versos com nomes consagrados. Em "Crazy", ele compartilha o microfone com a dupla Heltah Skeltah e não faz feio; já "The Raw" recebe Saigon e Inspectah Deck no maior batidão do disco.

No fim das contas, "Hunger Pains" é verdadeiramente uma homenagem à velha escola, mas vai além disso. Mostra um emcee promissor, com um estilo próprio e marcante, com total capacidade de não ficar restrito apenas ao circuito das mixtapes e participações especiais. Bekay tem talento, respeito pela época dourada - o disco é recheado de referências desta natureza - e sabe o que quer. Olho no moleque.

Bekay - Hunger Pains
01. Intro
02. I Am
03. Pipe Dreams
04. Bloodsport
05. Young
06. Rapstar [Hunger Pains]
07. Crazy
08. Brooklyn Bridge
09. That’s Brooklyn
10. Skemers
11. Realest That Run It
12. Pops
13. The Raw
14. Visions
15. I Am [Remix]

Vídeo de "Bloodsport":


Vídeo de "I Am" e "Brooklyn Bridge":

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Damu The Fudgemunk: Kilawatt V1 EP

Ano: 2009
Gravadora: Kilawatt Music
Produtor: Damu The Fudgemunk
Participação: Raw Poetic

O melhor produtor da nova geração ataca novamente. E agora não só com instrumentais. O talentosíssimo Damu The Fudgemunk, que o pessoal que acompanha o blog sabe que é um dos mais admirados na arte de beatmaking por este escriba, lançou seu último trabalho de 2009. Trata-se de um EP curtinho, intitulado "Kilawatt V1", com duas faixas rimadas pelo Raw Poetic, do Panacea, e seus respectivos beats, além de mais um instrumental, porque ninguém é de ferro. Para quem é fã do cara, também saiu um disco com as batidas do "Travel At Your Own Pace", que ele fez junto com o emcee Insight sob a alcunha de Y Society.

Pois bem, voltemos ao EP. Na verdade, o "Kilawatt" é um projeto da gravadora britânica de mesmo nome, que consiste em chamar um produtor por volume. O escolhido para dar o pontapé inicial foi o Damu. Outra curiosidade que eu gostaria de chamar a atenção foi a busca incessante empreendida para achar o disco pela internet. O trabalho só está disponível em vinil ou no iTunes e, com o crescente cerco aos blogs de música, foi quase impossível achar a parada. Tive de recorrer a um programinha que já fez a alegria de muita gente na era pré-blogs: o Soulseek. E mesmo assim foi difícil achar.

Finalmente apto para ouvir as músicas, fui recompensado pela qualidade. Damu mais uma vez deu mostras de que é o herdeiro legítimo de monstros sagrados da Golden Age norte-americana, com uma produção cada vez mais detalhista e cada vez menos sensível ao mercado. Não há concessões nos beats de Damu, apenas samples picotados e organizados imaculadamente, scratches e colagens certeiros e caixas tão pesadas quanto sujas. É bem legal ver como o cara consegue empilhar vários samples diferentes numa só batida e agir como se fosse um maestro, dando espaço para cada excerto e planejando diversas variações.

"Day By Day" abre o EP com Damu homenageando os DJs Grandmaster Roc Raida e Mr. Magic. Logo depois, o batidão e a voz de Raw Poetic entram em cena. E dá para notar o modus operandi de Damu: vários samples se intercalando ao longo do verso, uma colagem no refrão junto com um sax separado especialmente para a tarefa; no segundo verso, outro sample para reintroduzir Poetic no mix; e assim vai. O interessante é notar como o DopeGraffHead consegue administrar bem todos os samples disponíveis. "Prosper", a outra faixa, segue mais humilde, com um loop principal e pequenas variações, mas com o mesmo clima old-school, enfatizado pelo fato de Raw Poetic ter uma voz parecidíssima com um jovem Common. O resultado é quase um leftover de "Resurrection".

Depois de "Kilawatt V1", a esperança é que 2010 comece para Damu assim como terminou 2009: trabalhos na rua, produções para outros artistas e ainda mais reconhecimento. O cara tem um potencial enorme, e um trabalho com um emcee de maior porte com certeza ajudaria este beatmaker a evoluir ainda mais. Já foi ventilado um disco em parceria com o O.C., mas aparentemente foi para a gaveta. Entretanto, este parece ser um bom caminho: nada contra Insight e Raw Poetic, mas, quando Damu entrar no laboratório com um peso pesado, uma nova era dourada pode se principiar.

Damu The Fudgemunk - Kilawatt V1 EP
01. Day By Day
02. Prosper
03. Wonka Beat 1
04. Day By Day (instrumental)
05. Prosper (instrumental)

Vídeo da performance de "Prosper" ao vivo:

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Flora Matos: Flora Matos vs Stereodubs

Ano: 2009
Gravadora: independente
Produtor: Stereodubs (todas as faixas)
Participação: nenhuma

A menina saiu de Brasília para São Paulo graças ao rap, já trabalhou com alguns dos nomes mais respeitados do gênero no país, já viajou para a Europa levando sua música e tem só 21 anos. Para coroar este começo de carreira avassalador, Flora Matos lançou uma mixtape em parceria com a dupla de produtores LX e Léo Grijó, conhecidos como Stereodubs, intitulado sugestivamente de "Flora Matos vs Stereodubs".

O sugestivamente do parágrafo acima tem explicação. O versus do título do trabalho indica bastante o que acontece no decorrer das nove faixas da mix. Os Stereodubs têm como influências marcantes o ragga e o dancehall jamaicanos, enquanto Flora é uma emcee na mais completa acepção da palavra. O resultado deste encontro é um confrontamento de estilos, no bom sentido, que obriga os artistas a expandirem seus horizontes para se adaptar ao que está sendo proposto. Um desafio entre duas frentes de formações diferentes, que só poderia dar certo e ajudar no crescimento de todos os envolvidos. Melhor ainda se este processo de estudo e amadurecimento resulta em música boa. E este é definitivamente o caso deste "duelo".

E quem já pega o holofote nos primeiros segundos da mix e não larga de jeito nenhum é Flora. A tal versatilidade tão necessária para se sair bem na proposta do trabalho é algo com o qual a emcee lida sem maiores problemas. A seleção de temas exemplifica bem isso: a menina trata de relacionamentos em duas vias completamente distintas - vai da bem-humorada e sensual "Pretin" até a contundente "Pai de Família", que discute a formação de casais jovens e os posteriores motivos para uma separação ou para o "felizes para sempre" tão raro nos dias de hoje. Ainda há tempo para Flora mostrar sua carta de intenções em faixas como "Viver", onde o sample do Maestro do Canão Sabotage resume tudo, e "Esperar o Sol", esta última praticamente um manifesto de estilo de vida.

Mas a doçura vista nas faixas supracitadas não reina absoluta na mixtape. Há momentos em que a agressividade natural dentro de cada emcee brota e dita a levada frenética e implacável de Flora. "Sem Mão na Cara" é o maior exemplo disso: numa base eletrônica e igualmente agitada, a menina responde a críticos, ataca invejosos e reafirma sua missão. O refrão é emblemático, e mostra uma outra faceta da artista, a promissora capacidade de aliar rimas e melodias: "Sei muito bem quem são / correm noutra direção / vão ter que ter a pureza para interpretar meu som / Se sou preta ou não / entenda minha visão / dos branco eu herdei a cor, dos preto eu herdei esse dom".

Aliás, a prova máxima desta versão "cantora" de Flora é a faixa que fecha o projeto, "Minha Voz", que traz a garota usando sua voz da forma mais doce possível e assegurando uma despedida suave para o ouvinte, tudo sobre um instrumental igualmente tranquilo, com guitarras marcantes e uma pitadinha de dub. A melhor performance da mix, entretanto, é o single "Pai de Família", que combina o que de mais relevante resultou do confronto entre Flora e os Stereodubs. Numa levada absolutamente perfeita, que demanda daqueles que ouvem mas não prestam atenção uma mudança de comportamento para entender o que está sendo dito. O refrão é igualmente imaculado, mostra mais uma vez o talento melódico da menina e vai ficar grudado no seu ouvido durante dias. Mas é o batidão dancehall que será capaz de fazer brotar quantidades inimagináveis de suor do seu corpo.

Aliás, neste confrontamento entre emcee e produtor, são LX e Léo Grijó os responsáveis por ditas as regras. É como se eles testassem os limites de Flora. Primeiro, é o belíssimo beat de "Esperar o Sol", num clima que faz jus ao imperativo do título, que força Flora a adaptar sua levada a algo mais relax. Na já citada "Pai de Família", eles entram no território que dominam, e aí é a vez da menina acelerar. "Pretin" é um ponto convergente, que força tanto a dupla de produtores a prover um hit, quanto Flora a adicionar ainda mais malemolência ao flow. "Sem Mão Na Cara" mantém o lado eletrônico e frenético, e por aí vai.

No fim, tanto os Stereodubs dão um show de versatilidade, agregando MPB, jazz e rap ao seu repertório, quanto Flora prova que vai de pancadões dançantes a jams relaxantes com o mesmo talento e a mesma facilidade, talvez herança de sua criação cercada de diferentes influências musicais. A verdade é que a menina tem tudo para ser não só um grande nome do rap brasileiro, como tem totais condições de cruzar a fronteira e atingir audiências maiores e mais diversificadas. Pena que os bons artistas não sejam aqueles que tocam na rádio. Flora seria certamente presença garantida nas FMs da vida. E, nossa, ela tem a minha idade, amigos!

Flora Matos: Flora Matos vs Stereodubs
01. Viver
02. Esperar o Sol
03. Pai de Família
04. Interlúdio (Paixão)
05. Pretin
06. Sem Mão Na Cara
07. Até o Infinito
08. Meu Caminho
09. Minha Voz

Download

Performance ao vivo de "Pai de Família" na França:

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Diego Bernal: For Corners

Ano: 2009
Gravadora: Exponential Records
Produtor: Diego Bernal
Participações: nenhuma

Junte um advogado de ascendência latina da Costa Oeste norte-americana e uma paixão pelo rap e o que você terá? Uma beat tape gratuita, repleta de samples empoeirados de discos latinos e um daqueles trabalhos que surgem do nada e acabam se tornando um dos mais legais do ano. Diego Bernal é o beatmaker responsável pelo projeto, intitulado "For Corners", e tem uma história bem diferente. Ele é filho de ativistas e intelectuais - um ex-fazendeiro e uma professora aposentada - e passou sua infância em duas escolas bem distintas do Hip-Hop: o sulista Texas e a westside Bay Area. Isso para não citar novamente a profissão do cara. Desnecessário dizer que uma história tão original resulta num disco bem diferente, certo?

Pois bem. Por ser um álbum instrumental, os beats parecem ser construídos de forma diferente; a impressão é que possuem vida própria, independem de ter um emcee rimando sobre eles. Para alcançar esse feito, Bernal recorre ao que há de mais característico nos vinis de música latina que ele usou como fonte para confeccionar suas batidas: metais suingadíssimos, violões discretos e ainda mais suíngue nas baterias. Há de se ressaltar outro detalhe: provavelmente influenciado por seus samples, Diego constrói uma beat tape com faixas bem leves, cheias de groove; definitivamente aquele clima relaxado e tranquilo não dá as cartas em "For Corners".

Afinal de contas, como o nome diz, as batidas são feitas para as esquinas. E nada melhor do que se ter caixas batendo pesado. Esta é outra faceta do trabalho de Bernal. Apesar dos samples serem sempre diferentes e, por isso mesmo, protagonizarem o espectro dos instrumentais, são as caixas, os hi-hats e os bumbos os responsáveis por dar movimento a tudo e fazer sua cabeça balançar em concordância com as habilidades do beatmaker. Trocando em miúdos, é a bateria que faz o trabalho sujo - literalmente - para Bernal ir experimentando samples, trocando pequenos excertos a seu bel prazer durante as faixas, construindo o tecido musical do disco.

E dá-lhe loops irresistíveis, capazes de chamar a atenção até do seu pai - digo por experiência própria. Embora o disco comece com algo não tão original - o tributo a Dilla "Diego's Donut" -, conforme vai se desenrolando, as pérolas começam a surgir. As caixas arrebatadoras de "Armor All'd Out" são um bom exemplo do que tentei explicar nos outros parágrafos; são o suporte perfeito para a percussão latina e as cordas que vão mutando conforme o tempo passa. Outros truques na manga de Bernal aparecem aos poucos: pequenos trechos de falas pontuam alguns beats e introduzem outros e samples vocais que ora complementam, ora protagonizam os beats são os mais comuns. "Damn You", uma das menos frenéticas do álbum, é um bom exemplo do primeiro truque, enquanto "Momma's Boy", embora um pouco exagerado, representa o segundo.

Embora seja realmente um trabalho para se colocar no MP3 Player e ouvir do começo ao fim - até porque não há grandes oscilações, nem batidas muito melhores ou muito piores -, alguns outros destaques podem ser pinçados: "Dusty Sanchez" com seu carregamento infinito de samples é quase um resumo da proposta do disco, com vocais latinos, violão e muita sujeira, como o próprio nome sugere. "MC Rakim Cool Kane and the Furious Boyz Crew" traz de volta um clima old school, com um loop cativante; "The Way It Was" fecha o projeto em um clima bem diferente do restante, com metais tristonhos e bateria calma, numa construção quase cinematográfica.

No fim das contas e dos 43 minutos de instrumentais sujos, "For Corners" emerge como uma beat tape sólida, que traz uma sonoridade bem diferente e muito bem vinda para o rap norte-americano. Diego Bernal, embora já tenha dito em entrevistas que produz beats apenas por diversão e não tem qualquer ambição dentro do Hip-Hop, revela-se um excelente produtor, com estilo próprio e bastante versatilidade, seja picotando, seja loopando ou mesmo combinando as duas técnicas. O legal é que suas batidas não são repetitivas, sempre há variações, algumas até bruscas, algo que talvez seja mais necessário por ser um disco instrumental. De qualquer forma, baixe o disco, coloque no seu iPod/MP3 e seja feliz. O bagulho ainda é de graça, amigos.

Diego Bernal - For Corners
01. Diego's Donut (RIP J. DIlla)
02. Armor All'd Out
03. Bring It On Home
04. Damn You
05. Dusty Sanchez
06. Father's Son
07. Fat Sal
08. Go Diego Go
09. I Have a Long... Resume (Interlude)
10. May Day
11. Momma's Boy
12. Money Cash Woes (Interlude)
13. MC Rakim Cool Kane and the DJ Furious Boyz Crew (1986)
14. On4
15. My Friend Wants to Know (Interlude)
16. The Pause Tape Trainer
17. Velcro Flow
18. Summer's Over (Interlude)
19. The Way It Was

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Download da arte do disco