terça-feira, 30 de março de 2010

Army of the Pharaohs: The Unholy Terror

* Por Eduardo Campagnoli
Ano:
2010
Gravadora: Enemy Soil / Babygrande
Produtores: Crown (1, 11), Aktone (2), Celph Titled (3), Undefined Beats (4), Grand Finale (5), Vanderslice (6, 10), DC the Midi Alien (7), MTK (8), JBL the Titan (9), DJ Kwestion (12, 16), Triple Z (13), Hypnotist Beats (14), Apathy (15).

Pela primeira vez no Boom Bap, outro escriba tem licença para publicar seu texto. O "felizardo" é o Eduardo Campagnoli, de Petrópolis, no Rio de Janeiro, fã de Jedi Mind Tricks, La Coka Nostra e Army of the Pharaohs, além de visitante assíduo do blog desde que ele era lido só pela minha namorada e a minha mãe. Portanto, o Campagnoli é habilitadíssimo para falar aqui sobre o novo álbum do AOTP. Deem uma moral para o garoto.

Na Filadélfia, numa noite fria e mais escura do que nunca, os militares faraônicos reúnem-se, depois de Torturarem com Papel e de formarem um Ritual de Batalha.

- Muito bem, antes de qualquer coisa, gostaria de apresentar-me aos senhores aqui presentes: sou o general principal Vinnie Paz. Preciso avisar a quem ainda não me conhece que estou sempre com muita raiva, sou bastante agressivo e sou eu quem dá as regras por aqui, E, meus amigos, este não é um exército comum. Aqui temos um estilo próprio; somos um exército, não de homens normais, mas de faraós, faraós munidos de microfones prontos para matar qualquer um. Bem, também gostaria de avisar que, a partir deste ano que começa, temos a incorporação de mais uma força no que diz respeito ao financiamento de nossos projetos; além da Babygrande, a Enemy Soil Records também está junto conosco. Hoje é uma noite sombria e tensa, um terror nada sagrado, e é por isso que peço que não se assustem, soldados, pois ainda temos muito a apresentar, como os novatos, as produções, o armamento que será utilizado, etc, etc, etc. Por ora, deixo com a palavra o tenente e braço direito, Celph Titled.

- Boa noite, seus imbecis. Como o general Vinnie já disse, o ódio e a hostilidade aqui são presentes e o Fogo de Agonia está prestes a queimar qualquer idiota que não seguir as regras. E ei-las: nada de pederastia, choramingo e fraqueza. Temos que ser fortes, e quando essa força não for suficiente, junte-se a mais faraós, para formarem um verdadeiro Godzilla de rimas destruidoras. Ah, mais uma coisa. Quero deixar-lhes a par do projeto Bust Em In, de produção minha, que contém colaboração dos também tenentes Reef The Lost Cauze e Apathy, no qual o principal objetivo é mostrar quem somos e como podemos estraçalhar cabeças, com punchlines, braggadocios e levadas perfeitas sobre o campo de batalha de uma batida explosiva muito bem produzida por mim, sem modéstia, mesmo. Recado dado, deixo a palavra de novo com o general Vinnie.

- Certo, sentiram como é o clima por aqui. E acho que é hora de ver do que nossos novatos são capazes. Vejamos... cabo Journalist... nada mal. Próximo... cabo Block Mccloud, o que sabe fazer?

Block levanta-se e começa cantarolar:
- This is the night I’m...
- Que porra é essa? Qual é seu problema? Nada de Auto-Tune, por favor. Isso é mais annoying, irritante, do que o oficial Demonz foi em 2007. Como o tenente Celph já avisou, nada de pederastia por aqui. Teremos que lhe queimar vivo, ou te jogar para a besta Jus Allah lhe engolir vivo, pra ver se aprende a lição. Mas continue conosco, você tem potencial.

E prossegue o general Vinnie.

- Que o que esse cabo acabou de fazer aqui sirva de lição para os outros, ok? As regras são claras. Tudo precisa ser cru, raw, como dizem por aí. Se não se acharem capazes de causar o efeito desejado, juntem-se a alguém ou planejem algum projeto próprio. Celph já falou de seu projeto; digo-lhes aqui outro que produziu algo: Apathy compôs um belo exemplo de como algo fora dos nossos padrões de agressividade pode funcionar; Suicide Girl é calmante para este inferno de guerra em que vivemos. Apathy se sai muito bem. Agora, se não é esse o seu caso, você pode fazer como faz Reef, que cospe coisas relevantíssimas ao jogo, em Cookin Keys, por cima da minuciosa batida de um de nossos produtores, DJ Kwestion. Outros que estão em evidência nas produções são JBL the Titan, em Spaz Out, e Undefined Beats, em Prisoner. Apesar deste útimo usar mesmos elementos de exércitos paralelos ao nosso, faz um belo trabalho.

E, encerrando o discurso, como um Ultimatum, o general Vinnie completa.

- Bem, senhores, temos aqui um grande exército, com pouco espaço para todos brilharem. Mas a cada aparição de um militar faraó, sinto que há uma mesma sintonia e que estamos prontos para desbancar muitos por aí, com toda nossa artilharia pesada. É uma pena não termos nesse ano um de nossos primeiros recrutas, Chief Kamachi, que faz muita falta, mas talvez justifique sua ausência por conta de seu “Clock of Detiny”. Acho que pra fechar a noite, uma metáfora do Celph Titled, em Spaz Out, resume bem como somos: “Quando estou cozinhando algo fresco, vocês todos estão reesquentando pizza”, ou seja, vamos sempre inovar, enquanto os outros estarão buscando jeitos antiquados de fazer batalhas de microfones. Vamos à guerra!

Army Of The Pharaohs - The Unholy Terror
01. Agony Fires
02. Ripped To Shreds
03. Bust Em In
04. Prisoner
05. Godzilla
06. Suplex
07. Contra Mantra
08. Drenched In Blood
09. Spaz Out
10. 44 Magum
11. Dead Shall Rise
12. Cookin Keys
13. Burn You Alive
14. Hollow Points
15. Suicide Girl
16. The Ultimatum

domingo, 28 de março de 2010

Meth, Ghost & Rae: Wu-Massacre

Ano: 2010
Gravadora: Def Jam
Produtores: BT (faixa 1), Allah Mathematics (2, 7 e 10), Ty Fyffe (4), RZA (5), Digem Trax Productions (6), E Meal (8) e Scram Jones (11 e 12).
Participações: Solomon Childs (4), Streetlife (4), Inspectah Deck (6), Sun God (6), Tracy Morgan (9), Trife da God (11), Sheek Louch (11) e Bully (11).

Continuando a sequência de novos trabalhos do Wu-Tang Clan, três dos nove membros originais do grupo resolveram se juntar num projeto colaborativo. A ideia dos caras de lançar algo paralelo ao Wu é reminiscente daquela pequena rebelião orquestrada logo depois do lançamento do último álbum do Wu, "8 Diagrams", cuja produção foi alvo de críticas por parte de Raekwon e Ghostface Killah. Na época, o primeiro anunciara que faria um álbum com o tipo certo de batidas que se chamaria "Shaolin vs Wu-Tang". Pouco mais de dois anos depois, surge "Wu-Massacre", uma colaboração entre os dois revoltados e Method Man. Os emcees, porém, negaram que o disco tenha algo a ver com a proposta de antes.

Entretanto, não espere muita coisa relacionada ao Wu. A presença maciça de outros membros, algo comum nos trabalhos entre eles, não acontece aqui - apenas Inspectah Deck contribui com um verso - e a participação de RZA se resume a apenas um beat. Method Man, Raekwon e Ghostface claramente dominam os holofotes, particularmente o último, corroborando sua posição atual como membro mais expressivo do Wu na indústria. Ghost é o único a ter uma faixa solo e é o que mais aparece durante o disco. "Wu-Massacre", aliás, saiu pela Def Jam, onde Tony Starks e Meth atualmente militam - o que talvez possa explicar a menor assiduidade de Raekwon, presente em apenas quatro faixas e que ainda teve um verso cortado na faixa de abertura, "Criminology 2.5".

Mas, justiça seja feita, Ghostface rouba a cena. Seu storytelling está impecável como sempre, como pode ser visto em "Pimpin' Chipp", um conto entre um cafetão e sua "funcionária" mais eficaz. Os versos de Ghost induzem facilmente a mentalização da cena que ele descreve. O instrumental ainda ajuda o ouvinte a se teletransportar para os acontecimentos, graças a um loop que parece ter saído direto da trilha sonora de algum filme blaxpoitation obscuro. As primeiras linhas de Ghost fazem o resto do trabalho:

"Uma agulha foi deixada pendurada no braço de um cafetão
ele anda com uma cafetina e tem vadias na lista de pagamento
dava doces às crianças e sua família era pobre
(...)Devagar, ele crescia, mantinha os seus batedores com a polícia
Jim Brown era seu amigo, seu irmão era muçulmano, eles tentaram convertê-lo
torná-lo justo, mas as ruas tiraram o que tinha de bom dele"

As habilidades descritivas de Ghost também podem ser conferidas em "Youngtown Heist", narração de uma tentativa de assalto em que ele troca versos com o protegido Trife da God e os parceiros Sheek Louch e Bully.

Embora Ghostface seja um dos maiores destaques de "Wu-Massacre", é injusto não falar das outras duas estrelas. Raekwon aparece pouco, mas é consistente, como sempre, com um lirismo que evolui cada vez mais e, de tão complexo, parece simples e passa despercebido pelo ouvinte mais desatento. Seu verso em "Our Dreams" é um bom exemplo. Rae usa todas as influências principais do Wu - filosofia Five Percenter, xadrez, kung fu e as ruas - para estruturar suas rimas:

"Uma doce Wiz* te dará uma noite doce
e relaxe com os peões que temos, porque a vida é um tabuleiro de xadrez
é melhor você ter sua espada e segurá-la
nunca odeie seus inimigos, porque isso afeta o julgamento
eles só te invejam se souberem que você está ganhando bastante dinheiro"

Já Method Man também mantém a consistência, mas por vezes rouba o show com performances espetaculares. Com uma das levadas mais originais e fáceis de identificar da História do rap, ele brilha ao mesclar espanhol e inglês em "Miranda" e ao contar as idas e vindas de um relacionamento em "Our Dreams", coincidentemente as duas faixas cujo tema gira em torno de mulheres. Mas é na segunda parte da clássica "Meth vs Chef" que ambos os rappers arrancam um sorriso de todo fã do Wu. Na humilde opinião deste escriba, Meth vence a batalha, a exemplo da primeira vez, num pequeno verso que mistura desilusão com a indústria do rap, referência ao falecido Ol'Dirty Bastard e a já conhecida exaltação à cannabis:

"Aí, foda-se você, me pague; se Dirt Dog pudesse me ver agora
ele provavelmente diria: "Foda-se você, me pague"
expulsando nuvens de fumaça, a parada é doida
coloque uma bandana na cabeça, fique estiloso
o rap não tem feito nada por mim ultimamente
tudo está completamente errado, este jogo tentando me enganar
eu aposto que isso nunca acontece com o Jay-Z"

Musicalmente, "Wu-Massacre" tem batidas para todos os gostos. A primeira indicação de que o projeto não tem muito a ver com o tal "Shaolin vs Wu-Tang" de antes é que o primeiro single é a radiofônica "Our Dreams", curiosamente produzida por RZA. Utilizando um sample de "We Almost There", de Michael Jackson, o Abbott cria um instrumental bem baba, no ponto para os três generais rimarem sobre e para mulheres. No extremo oposto, "Meth vs Chef Part II" é minimalista, com metais triunfantes e uma virada de bateria espetacular, cortesia de Mathematics. No meio desta dicotomia, há o remake "Criminology 2.5", a mal sucedida futurista "It's That Wu Shit" e o batidão turvo de "Youngtown Heist", cujo sample vocal é sensacional.

Não dá, porém, para dizer que, pela variedade, o disco não tem uma direção definida. No fim das contas, a produção, embora haja contribuições de diversos beatmakers, é bem amarrada e flui muito bem nos escassos 30 minutos de música de "Wu-Massacre". Se, por um lado, os batidões mais ignorantes que consagraram o Wu não aparecem, é possível identificar uma tentativa de atualizar esta sonoridade. Resumindo, são poucos os percalços nas batidas; "It's That Wu Shit", apesar do nome, é o maior deles, e "Our Dreams", mesmo não sendo o beat de RZA, vai garantir a Meth, Ghost e Rae espaço ostensivo nas rádios.

Outro ponto importante são as participações. Dois dos convidados são emcees relacionados ao Wu, e são eles os responsáveis pelos melhores momentos no microfone. Streetlife rouba a cena em "Smooth Sailing Remix", com um verso que homenageia todos os membros originais do Wu-Tang numa técnica parecida com a utilizada por GZA em "Labels" e "Fame", por exemplo. Já Sun God absolutamente domina a batida de "Gunshowers", com um flow impecável, deixando o pobre beat em pedaços.

Embora não tenha sido um grande álbum como alguns fãs teimosos e iludidos do Wu - eu, por exemplo - imaginavam, "Wu-Massacre" serve muito bem para manter o nome do grupo em evidência. Meth, Ghost e Rae criaram um disco de qualidade e carregaram a tocha da existência do Wu que antes estava nas mãos solitárias de Raekwon com a sequência de "Only Built 4 Cuban Linx". Apesar de ter apenas 30 minutos - um dos principais problemas do projeto -, o álbum traz o trio de veteranos em uma forma consistente e fazendo o que sabem: levadas afiadas, rimas de alto nível e bons beats. Esperemos o próximo movimento das peças deste tabuleiro chamado Wu-Tang Clan.

*Wiz é uma abreviação de Wisdom, ou sabedoria, em português. Na filosofia Five Percenter, a mulher é relacionada à sabedoria.

Meth, Ghost & Rae - Wu-Massacre
1. Criminology 2.5
2. Mef vs. Chef Part II
3. Ya Moms skit
4. Smooth Sailing Remix
5. Our Dreams
6. Gunshowers
7. Dangerous
8. Pimpin’ Chipp
9. How To Pay Rent skit
10. Miranda
11. Youngstown Heist
12. It’s That Wu Shit

Vídeo de "Our Dreams":

quinta-feira, 25 de março de 2010

Marco Polo & Ruste Juxx: The Exxecution

Ano: 2010
Gravadora: Duck Down
Produtor: Marco Polo (todas as faixas)
Participações: DJ Revolution (faixas 1 e 2), Rock (4), Freddie Foxxx (4), Black Moon (6) e Sean Price (1o).

Inicialmente casa de toda a Boot Camp Click, a Duck Down Records completa neste ano 15 anos estabelecida como uma das gravadoras mais importantes do cenário independente dos EUA. Além das pratas da casa Buckshot, Sean Price e Rock, entre outros, os caras estenderam seus tentáculos e trouxeram para o time nomes sonantes como KRS-One, a dupla Kidz In The Hall, 9th Wonder e Skyzoo. Mas o selo também não deixou de apostar em novos talentos, na segunda geração de artistas garimpados nas ruas do Brooklyn direto para os estúdios. O emcee Ruste Juxx, protegido de Sean Price, é o maior exemplo, já tendo aparecido em diversos trabalhos lançados por rappers da label.

Mesmo antes de lançar seu primeiro álbum no ano passado sob a benção de Sean Price, Juxx já era conhecido pelos fãs da Duck Down pela energia e as rimas agressivas com que recheava cada participação. Para 2010, ele encontrou o parceiro perfeito para mais um disco: Marco Polo. O produtor canadense já havia lançado em meados de 2009 "Double Barrel", uma parceria com o rapper Torae destinada a trazer de volta aquele rap hardcore das ruas nova-iorquinas. Sendo assim, a união entre o beatmaker provedor de batidas fortes e o jovem emcee faminto por mostrar seu valor foi mais do que oportuna, e resultou em "The Exxecution".

A proposta do álbum é muito parecida com a de "Double Barrel": rap pesado, rimas de batalha e batidas hostis. Como diz o próprio release dos caras, Marco Polo está executando os produtores, enquanto Ruste Juxx faz o mesmo com os emcees. Já dá para termos uma ideia da atmosfera do trabalho, né? Pois bem, similaridades à parte com "Double Barrel", o fato é que Juxx é um rapper com características diferentes das de Torae. Enquanto este apostava em uma abordagem mais técnica, Juxx vai direto na jugular, demonstrando uma presença de microfone impressionante, metaforicamente domando as batidas de Marco Polo na força, na energia.

A verdade é que Ruste é aquele típico rapper no começo da carreira que conseguiu sua primeira chance de brilhar. Obviamente, ele não vai querer desperdiçar o momento e vai aproveitar suas maiores habilidades. Assim, os temas realmente ficam limitados aos battle raps e ao bragadoccio, se diferenciando apenas pelo ângulo que Juxx utiliza para provar seu ponto de vista de que ninguém nas ruas rima tão bem quanto ele e que uma execução em massa está para começar. "Nobody" é um bom exemplo do primeiro tópico, enquanto "Death Penalty" ilustra o segundo. Apenas na saideira "You Can't Stop Me" ele relaxa, com uma letra mais introspectiva, parando para refletir e quase que tentando justificar suas ações com reminiscências da infância e adolescência. De qualquer forma, é a levada agressiva e faminta do jovem rapper que cria todo o clima hostil pensado para o disco. Juxx rima ora como se passasse como um trator de sílabas pelos breaks de Marco Polo, ora como se os bumbos e caixas agissem como seus parceiros de crime.

Para ficar a par de tanta energia, Marco Polo precisou manter sua recente onda de batidas cada vez mais pesadas. A produção em "The Exxecution" segue pelas mesmas linhas de "Double Barrel", com beats acelerados e de caixas marcantes. São as particularidades de cada faixa que fazem elas se destacarem. Em "The Exxecution Intro", por exemplo, é impossível não se render aos metais bem anos 90 que surgem logo no começo do instrumental, guiando a apresentação de Ruste Juxx. "Death Penalty" é o maior batidão do álbum, com um beat frenético, tão acelerado quanto ameaçador. O conceito militar que sempre marcou a Boot Camp Clik também é incorporado por Polo, como nas faixas "Rearview" e "Lets Take a Sec", esta última marcante por contar com a participação de todo o Black Moon - Buckshot, 5ft e DJ Evil Dee.

Falando em participações, as poucas vezes em que forasteiros aparecem em "The Exxecution" são muito bem aproveitadas. Os amigos Rock e Sean Price aparecem em faixas diferentes, mas marcam a presença da Duck Down; o último, mentor de Juxx, dá mais uma aula de carisma e punchlines nas suas aparições. O veterano Freddie Foxxx surge em "Take Money" para dar a credibilidade necessária para quem quer fazer um álbum de hardcore nova-iorquino. Mas é o DJ Revolution o convidado que rouba o show. Ele simplesmente rouba a cena no final de "Death Penalty", com uma sequência de scratches tão espetacular que, a exemplo de Marco Polo e Ruste Juxx com seus competidores, deixará diversos DJs com medo de chegar nas pickups por um bom tempo.

Embora o conceito já tenha sido explorado no ano passado pelo próprio Marco Polo, "The Exxecution" consegue sobreviver às comparações e traçar seu próprio destino. Podemos considerar que, musicalmente, o álbum começa de onde parou "Double Barrel", com o produtor canadense provando sua consistência. Mas, como um todo, o projeto é ainda mais pesado que o anterior, graças à já mencionada "fome" de Ruste Juxx, que mostrou definitivamente que pode sem problemas dividir o microfone com os monstros sagrados de sua gravadora.

Marco Polo & Ruste Juxx - The Exxecution
01 The eXXecution Intro
02 Death Penalty
03 Rearview
04 Take Money
05 I’m On It
06 Let’s Take A Sec
07 Bread On Ya Head
08 Wings On Your Back
09 Nobody
10 Fuckin Wit A Gangster
11 Watch Yo Step
12 You Can’t Stop Me

segunda-feira, 22 de março de 2010

Entrevista: Elo da Corrente

No fim do ano passado, o trio paulistano Elo da Corrente, formado pelos emcees Caio e Pitzan e o DJ PG, lançou o EP "O Sonho Dourado da Família", o primeiro trabalho inédito do grupo desde o disco de estreia "Após Algumas Estações", que saiu em 2007. Favoritos do Boom Bap no rap feito no Brasil, Pitzan e Caio concederam uma entrevista por e-mail ao blog, onde falaram sobre o EP, o disco novo - que comemorará a primeira década de existência do Elo -, a participação na Missão de Pesquisas Folclóricas e mais. Confira a conversa e aproveite para ler a resenha sobre "O Sonho Dourado da Família"!

Boom Bap: Como surgiu a idéia de lançar o EP no fim do ano passado? Qual o objetivo do Elo com "O Sonho Dourado da Família"?
Pitzan: Desde o fim do ano passado a gente vem pensando no nosso álbum de 10 anos. A cara que a gente quer que ele tenha, a sonoridade. O EP surgiu quando a gente se ligou que já tínhamos instrumentais pra muito mais que um álbum, e os que estavam relativamente sobrando tinham uma unidade.

Caio: Juntamos seis beats, sendo dois de cada um de nós e começamos a escrever. No fim de tudo, fizemos juntos o último instrumental, intitulado “Fim”. Não existe um grande objetivo por trás de “O Sonho Dourado da Família”, é apenas necessidade de se fazer algo novo.

BB: Qual o significado de "O Sonho Dourado da Família"?
Pitzan: É a nossa união. Eu e meus irmãos, Caio e PG, mais próximos do som.

Caio: Todos têm sonhos, e o da família Elo da Corrente é continuar nos reinventando, produzindo, fazendo shows. Criando boa música!

BB: No EP, vocês trabalharam com uma diversidade de temas, como escravidão e política. Qual foi o denominador comum, se é que houve, que possibilitou a vocês juntarem faixas com temáticas tão diferentes num único registro?
Caio: O denominador comum talvez seja o timbre de nossas vozes. Os beats são bem diferentes uns dos outros, e na verdade isso aconteceu naturalmente. Um disco com apenas sete faixas falando de coisas parecidas não seria tão interessante.

Pitzan: A gente só queria fazer diferente do que fizemos no “Após Algumas Estações”.

BB: Na resenha que escrevi no Boom Bap sobre o EP, eu deixei minha interpretação sobre a faixa "Um Filme", mas queria saber de vocês. O que de tão precioso vocês carregavam durante a faixa?
Pitzan: Um disco. Eu ainda dou a letra: "...dando as coordenadas pra entrega da lenda/ de 10 polegadas, não há quem não se renda/ às suas batidas pesadas..." . A letra se trata do roubo desse disco de 10 polegadas. No filme, eu e o Caio somos os ladrões, o PG é o cara que contrata a gente pra roubar o disco, que existe, de fato. O grupo se chama Orquestra Afro Brasileira e o álbum, Obaluayê. É o primeiro deles. Meu irmão PG adquiriu essa preciosidade e o som bateu muito forte em nós três. A gente pirou tanto nesse disco que precisávamos falar dele de alguma forma. Os scratchs e a colagem que ele usou vieram desse disco. E ele termina com um "Obaluayêêêêê..."

BB: Deu para perceber no EP uma musicalidade bem próxima dos ritmos brasileiros. Como se deu essa aproximação? Foi algo pensado ou ocorreu naturalmente?
Caio: Há tempos a gente tenta aproximar nosso rap daquilo que ouvimos de música nacional. Acho que isso é natural que aconteça até com outros grupos com o passar do tempo, pois já é hora de fazermos um som em nosso país que, por mais que venha de algo que vimos primeiramente na América do Norte, tenha características brasileiras não só nos temas abordados. Durante muito tempo se fez rap aqui muito parecido com o de lá, mas percebo que de um certo tempo pra cá outros grupos de rap também tem tornado a coisa mais brasileira.

BB: Como foi o processo de gravação e produção do EP? Eu li na comunidade do grupo no Orkut que os beats usados foram material que sobrou da gravação do disco novo...
Pitzan: Foi praticamente isso. Já a gravação de vozes foi feita em único dia.

BB: Falando no disco novo, já há uma previsão de lançamento? Qual será o nome do projeto?
Pitzan: O disco ainda não tem nome e nem previsão de lançamento.

BB: Como está o andamento da "confecção" dele? Já existem participações confirmadas? As produções serão do próprio grupo? O que podemos esperar em termos de assuntos abordados?
Pitzan: Os instrumentais serão todos nossos. As participações ainda não foram definidas, mas teremos algumas e, quanto aos temas, tentaremos fazer diferente de tudo que fizemos até agora.

BB: O grupo participou recentemente da Missão de Pesquisas Folclóricas. Como foi a experiência?
Caio: Foi fantástico! É algo que a gente ainda pretende levar adiante, planejamos lançar um disco da Missão e já estamos gravando, aos poucos, as músicas que compusemos para esse trabalho.

BB: A participação na Missão de Pesquisas Folclóricas influenciou em algo na concepção deste novo disco (ou no próprio EP), tanto musicalmente quanto liricamente? Qual foi a importância dela para o grupo?
Caio: Foi de extrema importância para nós. A imersão nessa atmosfera dos fonogramas captados por Mario de Andrade nos deu a sensação de lidar com a raiz da música que mais temos pesquisado e comprado elepês. É perceptível o lance afro não só na parte rítmica quanto em algumas melodias de voz, isso mexeu demais com a gente pois esses fonogramas tinham muito a ver com aquilo que estávamos pretendendo usar nos nossos próximos instrumentais ou simplesmente coisas que andávamos escutando bastante. Com certeza foi e continuará sendo uma das experiências musicais mais sensacionais das quais participamos.

BB: Desde que surgiu, o Elo demorou um bom tempo para lançar seu primeiro álbum. Já o intervalo que separou este segundo disco foi bem menor. A que vocês creditam isso? Acham que o momento pelo qual o Hip-Hop brasileiro passa facilita a produção ou, agora que vocês já "estrearam", fica mais fácil colocar o trabalho nas ruas?
Caio: A gente sempre vai colocar discos na rua, é algo que nós três gostamos muito, ter o disco físico em nossas mãos. É tornar a música palpável. Nos últimos tempos temos estado bastante produtivos, e esse intervalo menor, acredito que se deva a isso.

BB: Junto com o lançamento do EP, vocês também comercializaram uma camisa relacionada ao trabalho. Como surgiu a ideia? Como foi a recepção do público? Vocês ficaram satisfeitos com o resultado? Pretendem explorar esta ação novamente com o disco?
Pitzan: O público gosta e a gente também. A recepção foi muito boa. Foi algo que já havíamos feito inclusive com o “Após Algumas Estações”, mas dessa vez a qualidade do produto final nos agradou um pouco mais. Ainda não sabemos se faremos outra camiseta quando sair o disco de 10 anos, mas existe a idéia de lançarmos algo junto com o play, alguma espécie de acessório para os ouvintes que se interessam em colecionar nossos lançamentos.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Ghostface Killah: Supreme Clientele

Ano: 2000
Gravadora: Razor Sharp
Produtores: Black Moes-Art (faixa 2), Juju (3), Carlos Broady (4 e 12), The Blaquesmiths (5), Hassan (6), RZA (7, 8, 13 e 17), Mathematics (9 e 19), Inspectah Deck (11), Choo the Specializt (15) e Carlos Bess (18).
Participações: RZA (faixas 2, 7 e 11), T.M.F. (3), Lord Superb (4 e 12), Raekwon (6 e 19), Method Man (8), Cappadonna (8 e 19), Redman (8), 60 Second Assassin (11), Chip Banks (12), Hell Razah (12), Solomon Childs (13), U-God (18), Madam Majestic (18), GZA (19) e Masta Killa (19).

O dia 30 de março tá chegando e, com ele, um dos álbuns mais aguardados pelo Boom Bap neste comecinho de ano: o Wu-Massacre. Como forma de aplacar a ansiedade, hoje o blog começa uma série falando sobre o melhor álbum solo da carreira de cada um dos três emcees que se juntaram para o novo projeto: Ghostface Killah, Method Man e Raekwon. Comecemos, pois, com Tony Starks, Ironman, Pretty Toney ou Ghostdeini, também conhecido como o único membro solo do Wu-Tang Clan que conseguiu lançar um segundo álbum melhor do que o primeiro.

E "Supreme Clientele" é o nome deste feito. Logo depois de estourarem, os caras do Wu lançaram clássico atrás de clássico, com "Liquid Swords", "Only Built 4 Cuban Linx", "Return to the 36 Chambers", "Tical" e "Ironman", este último também de Ghost. Depois do álbum duplo "Forever", porém, a segunda rodada de álbuns solo só fez decepcionar. Era o fim do plano de cinco anos do RZA - na primeira metade de década do grupo, ele teve o controle total sobre a produção de cada disco que saiu com a marca Wu -, e os membros do grupo resolveram buscar novos sons. Quebraram a cara, menos Ghostface, que, se não delegou todos os beats do seu segundo álbum a RZA, pelo menos teve o bom senso de deixá-lo ser o diretor executivo do projeto.

Portanto, mesmo com nomes desconhecidos e apenas quatro beats do Abbott, "Supreme Clientele" ainda tem aquele clássico som do Wu, com batidas fortes, direto na jugular, sem muita frescura - até mesmo os samples de kung fu aparecem vez ou outra. Aliás, isso serve como atestado da influência do estilo do Wu nos produtores da época; é só perceber, por exemplo, como os samples vocais acelerados apresentados por RZA já estavam difundidos, mesmo antes de explodirem com Kanye West e companhia. Para além disso, note a influência do próprio Ghostface na escolha dos instrumentais. Conhecido por ter uma queda pelo soul, o Iron Man não deixou passar bases encharcadas daquelas strings típicas do soul da Filadélfia, conhecido como Philly Soul.

E, apesar da fórmula mais ou menos definida, ainda há espaço para algumas experimentações. "Nutmeg", por exemplo, abre o disco totalmente desprovida de caixas mais incisivas; ao contrário, o protagonismo no mix cabe a uma linha de baixo simples, que segura a onda até um loop mais funky assumir o refrão. "Stroke of Death" é talvez a batida mais diferente, como se o DJ estivesse ali ao vivo fazendo a batida voltar para que Ghost, RZA e Solomon Childs pudessem rimar; é talvez uma homenagem aos primórdios do rap, quando os disc-jóqueis se esfolavam para manter um loop de dois segundos. Até mesmo uma pitada de jazz-rap aparece em "Supreme Clientele", com "Malcolm", guiada completamente por um piano, além de um R&B meio tosco em "Cherchez Laghost", em tempos em que o Wu mantinha a agressividade como marca registrada.

Mas, na verdade, ainda são os tais batidões agressivos que elevam o nível do disco. "Buck 50" parece ter sido feito na medida para Ghost; samples de algum disco obscuro de soul, bumbos e caixas batendo incessantemente, estrutura simples e muito espaço para o anfitrião e seus convidados Method Man, Cappadonna e Redman rimarem. Apesar do nome, esta não é a diss para o então novato 50 Cent - naqueles tempos um membro do Wu jamais gastaria uma música inteira para isso, então só tocaram no assunto numa skit. Por outro lado, "Wu Banga 101" parece ter sido feita para GZA, no seu estilo lento mas ainda ameaçador. Não é à toa que o Genius é o primeiro a rimar na faixa. Mas é a brincadeira com os samples picotados no começo de cada verso que torna a faixa clássica.

E então temos "Mighty Healthy". Eu dedico um parágrafo inteiro para esta faixa, pois, pessoalmente, é uma das preferidas de todos os tempos. Produzida por Mathematics, a música é a síntese de "Supreme Clientele". Os samples de kung fu estão lá, o break clássico de "Synthetic Substitution" é o esqueleto da batida, o piano e baixo soturnos dão o tom ameaçador e ainda há aquele samplezinho vocal bem sacana que faz qualquer um se render - e não esqueça dos scratchs!. Em suma, é uma das melhores batidas a saírem da marca Wu e é capaz de fazer você balançar a cabeça por horas e até ficar gesticulando como o Ghostface faz no clipe para as rimas que estão na linha tênue entre completo nonsense e carisma genial que só o maluco do Tony Starks é capaz de oferecer. Linhas como "você está certo, eu transo com as fãs" ou aquela cantoria desafinada no refrão são a cereja no bolo.

Aliás, liricamente falando, Ghost exibe por todo o disco o que podemos perceber em "Mighty Healthy". As rimas na maioria das vezes não fazem sentido para o ouvinte comum - e já vi muitos fãs norte-americanos do Wu admitirem que não entendem o que o cara quer dizer -, mas o flow do cara é irresístivel. Além de tudo, "Supreme Clientele" entra para o rol dos clássicos do rap como uma aula de como a levada pode carregar um disco. O storytelling, o bragadoccio e o battle rap estão todos no álbum, mas muitas vezes você nem entende, e nem liga; o importante são as rimas internas, multissilábicas, as punchlines. A voz fina de Ghost transforma-se verdadeiramente em mais um instrumento colocado no mix. É quase como um disco instrumental, com a voz de Ghost sendo o instrumento principal.

E todo esse nonsense funciona, na verdade, como algo positivo. Ghost seguiu este estilo por toda sua carreira e o transformou em marca registrada. É como se ele se sentasse, pegasse a caneta e o papel e começasse a escrever o que vem na cabeça. Amigos, Ghostface Killah é uma das maiores representações "rapeiras" do dadaísmo. Vejam o trecho de um texto sobre o gênero na Wikipedia: "(...) talvez as formas principais da expressão dadá tenham sido o poema aleatório. (...) o Dadaísmo defende o absurdo, a incoerência, a desordem, o caos. Politicamente , firma-se como um protesto contra uma civilização que não conseguiria evitar a guerra". Tudo a ver, né?

Curioso também notar que o álbum é o primeiro em que Ghostface sai da sombra de Raekwon. Depois de ser o coadjuvante de "Only Built 4 Cuban Linx" e dividir "Iron Man" como o parceiro, Ghost assume os holofotes. O amigo gordinho aparece em apenas duas faixas e, mais importante, Tony Starks monopoliza diversas músicas no disco, num cenário bem diferente do que dos primeiros solos. Ghost até se refere a isso no início de "Might Healthy": "O mundo não pode encostar Ghost, o coadjuvante da Purple Tape (como ficou conhecido 'Only Built...') de Rae".

Na época em que foi lançado, em 2000, "Supreme Clientele" funcionou como um resgate do Wu, que já dava sinais do seu primeiro declínio depois de "Forever", em 1997, com os seguidos solos decepcionantes. Como bônus, iniciou a saga de Ghost como membro proeminente do grupo, já que antes era ofuscado por nomes como RZA, Meth, Raekwon e GZA. A partir deste álbum, Tony Starks tornou-se o mais consistente emcee do Wu e um dos mais carismáticos do rap.

Ghostface Killah - Supreme Clientele
01: Intro
02: Nutmeg
03: One
04: Saturday Nite
05: Ghost Deini
06: Apollo Kids
07: The Grain
08: Buck 50
09: Mighty Healthy
10: Woodrow the Basehead (Skit)
11: Stay True
12: We Made It
13: Stroke of Death
14: Iron's Theme Intermission
15: Malcolm
16: Who Would You Fuck?
17: Child's Play
18: CherChez LaGhost
19: Wu Banga 101
20: Clyde Smith (Skit)
21: Iron's Theme Conclusion (Outro)

Vídeo de "Mighty Healthy":


Vídeo de "Apollo Kids":


Vídeo de "Cherchez Laghost":

segunda-feira, 15 de março de 2010

Mental Abstrato: Pure Essence

Ano: 2010
Gravadora: Goon Trax
Produtores: Calmão e Omig One (todas as faixas).
Participações: Gelleia (faixa 1), Ronaldo Camilo (2 e 9), Logics (3), Newsense (3), Mo'Dyé (5), Ohmega Watts (7), Marcelo Monteiro (9), Minismooth (10), Awon (12) e Piso Inferior (14).

Que a música brasileira é produto de exportação todos nós sabemos. Mas e o rap nacional? Pois bem, mesmo um dos gêneros mais fechados da nossa terra já começa a abrir caminhos mares afora - justo aquele acusado de ser americanizado e não pertencer à cultura popular. Os responsáveis pelo feito são os produtores Calmão e Omig One, conhecidos também sob a alcunha de Mental Abstrato. Juntos, eles confeccionaram "Pure Essence" e chamaram a atenção da gravadora japonesa Goon Trax, que logo colocou o álbum nas ruas orientais.

Quem acompanha o Boom Bap já ouviu falar da Goon Trax e da cena de rap no Japão. Conhecidos por um estilo batizado como mellow rap, os japas acharam nas batidas suaves e fortemente inspiradas pelo jazz um nicho que alcançou sucesso de público e de crítica por lá. Imagine então como eles ficaram quando dois beatmakers brasileiros apareceram com um disco calcado no jazz, no samba e na bossa nova. A resposta é clara: piraram! Um rap ao gosto japonês utilizando os elementos da música brasileira que são mais reverenciados lá fora - "Pure Essence" não poderia dar errado jamais.

E, claro, não deu. Calmão e Omig One mostram um gosto refinadíssimo para batidas suaves. E o melhor de tudo: mostram uma pesquisa musical genuinamente brasileira, algo sempre defendido pelo Boom Bap. Assim, eles produziram um disco de jazz-rap baseados principalmente em samples tupiniquins e mostraram, mais uma vez, a riqueza, a mina de ouro que aguarda languidamente os produtores nacionais nos sebos desse Brasil afora. Entretanto, não se restringiram aos samples; chamaram músicos como Ronaldo Camilo e Marcelo Monteiro para ajudar na instrumentação dos beats arquitetados.

O resultado de toda essa preparação especial são 14 faixas de uma mistura deliciosa de melodias relaxantes e batidas ora mais fortes, ora tão discretas que chegam a se incorporar no mix. O clima, porém, é invariavelmente tranquilo, e induz facilmente o ouvinte a esquecer a correria do dia a dia, sentar no sofá e ouvir o disco do começo ao fim. Dívidas? Problemas com a esposa? Chefe mala? Emprego que você não aguenta mais? Você vai esquecer tudo isso ao ouvir a belíssima composição de "Já Era Uma Vez". O Dodô perdeu dois pênaltis logo contra o Flamengo? Você nem vai lembrar disso com as strings delicadas de "A Origem é Essa".

Além dos instrumentais impecáveis - ainda preciso citar a uptempo "Jazzeira" e a soturna "Bons Fluídos" -, Calmão e Omig One ainda contaram com convidados, a maioria deles providenciados pela Goon Trax. Assim, podemos ver os emcees da banda ArtOfficial Newsense e Logics se deliciarem sobre a batida de "Me Desculpe Mas Não Resisti", com rimas tão leves quanto os samples, e o injustiçado, subestimado e escondido Ohmega Watts mal conseguir disfarçar sua euforia por rimar sobre a base samba-jazz de "Quando Ouviu Meu Samba", com direito a sample vocal tupiniquim e tudo - reparem no emcee se aventurando no português e mencionado samba incontáveis vezes. A outra contribuição "rapeira" é do também gringo Awon em "A Primeira Audição É A Que Fica", toda bossa-nova. Para além do rap, o Mental Abstrato ainda conta com duas cantoras: a francesa Mo'Dyé e a norte-americana Minismooth, que emprestam um pouco de doçura aos beats. E, claro, também há de se mencionar a incursão dos produtores nas rimas em "Assim eu Sigo", a única faixa com versos brasileiros.

Aliás, este é o meu único "problema" com "Pure Essence". Fiquei curioso em imaginar como seria o resultado do disco caso emcees brasileiros também rimassem sobre alguns dos beats da dupla de produtores. E, além das questões estéticas, do que resultaria a aproximação de mais artistas nacionais com a Goon Trax? Talvez mais participações, mais parcerias, enfim. É algo a ser pensado pela cena nacional - um diálogo maior com um país que conseguiu construir um movimento forte e rentável sem os dólares norte-americanos.

Divagações do escriba à parte, "Pure Essence" é um dos álbuns mais originais que o rap brasileiro já viu nos últimos tempos. Calmão e Omig One acertaram em cheio ao valorizarem a música brasileira e criaram um disco consistente, sem sobressaltos e de muito valor. Pena precisarem de pessoas fora do país para mostrar sua música. Em parte, o projeto do Mental Abstrato ilustra, assim como o DJ norte-americano BK-One e seu "Rádio do Canibal", como os gringos estão antenados no potencial da mistura entre os ritmos nacionais e o rap. Sorte, desta vez, que Calmão e Omig One chegaram antes deles.

Mental Abstrato - Pure Essence
01. Intro
02. Ja Era Uma Vez
03. Me Desculpe Mas Não Resisti
04. Universo Encantado
05. The End
06. A Origem É Essa
07. Quando Ouviu O Meu Samba
08. Assim Eu Sigo
09. Mundo Cruel
10. Pretérito Perfeito
11. Jazzeira
12. A Primeira Audição É A Que Fica
13. Bons Fluidos
14. Villa Bentrane

Clique para escutar o disco

terça-feira, 9 de março de 2010

Kidz In The Hall: Land of Make Believe

Ano: 2010
Gravadora: Duckdown Records
Produtores: Double-O (todas as faixas) e Just Blaze (co-produziu a faixa 9).
Participações: The Kid Daytona (faixa 4), Russoul (5 e 15), MC Lyte (6), Marsha Ambrosius (8), Just Blaze (9), Colin Munroe (9), Chip Tha Ripper (10), Donnis (10), Amanda Diva (11) e Tim William (12).

A dupla de Chicago Kidz in The Hall surgiu na cena há alguns anos como uma das boas revelações do underground americano com o ótimo "School Was My Hustle". Pouco depois, deu mostras de que não queria ficar presa apenas aos confins do rap e tentou se equilibrar na linha tênue entre mainstream e subsolo com "The In Crowd", obtendo relativo sucesso. A transição do emcee Naledge e do produtor Double-O de desconhecidos de uma cidade cuja cena é essencialmente alternativa para raros representantes de um mainstream de qualidade encontra mais um capítulo no novo álbum do duo, "Land of Make Believe".

O novo disco funciona como o primeiro checkpoint da dupla, e isso é perceptível nas novidades que tanto Naledge quanto Double-O trazem para a mesa com o trabalho. O rapper, que surgiu muito bem no álbum de estreia, misturando carisma e habilidade, apresenta-se em "Land of Make Believe" muito mais contemplativo e introspectivo do que antes, dando sequência a um estilo que ele experimentou com sucesso em "Inner Me", uma das faixas mais elogiadas de "The In Crowd". E não demora muito para sabermos disso. A primeira frase que Naledge pronuncia no novo disco é sugestiva: "Você já se sentiu sozinho numa sala cheia de gente? Às vezes eu me sinto como se meus pensamentos fossem ilegais".

Mas não pense que o repertório do emcee de Chicago foi reduzido a lamentações existenciais e reflexões sobre seu estilo de vida. Pelo contrário. O bom humor que caracterizou Naledge aparece em faixas como "Jukebox", o segundo single, com o jovem rapper usando suas rimas para destilar sua lábia com as mulheres. Os prazeres do chamado sexo frágil e do mundo da noite também não são esquecidos, como podem atestar "Bougie Girls" e "L.O.V.E." - coincidentemente algumas das músicas mais fracas do álbum.

Mas, justiça seja feita, é quando Naledge resolve abraçar uma abordagem mais low-key que o disco ganha frescor e diz realmente a que veio. É assim que o rapper comunica com os ouvintes e passa o caráter de reflexão proposto pelo álbum. O momento de Naledge é de parar, olhar para os primeiros dias da carreira, analisá-los e começar a planejar o futuro. O que ele pode aproveitar? O que ele precisa mudar? Imagine o emcee sentado numa montanha depois de subi-la, pronto para descê-la, e você se conectará automaticamente a faixas como "Take Over The World" e "Do It All Again". Visualize o cara pensando na vida pré-rap e "Simple Life" completará sua imagem. Depois de tudo, use "Land of Make Believe" como uma metáfora para a vida comum e você se surpreenderá com as semelhanças. Todos nós temos este momento de guinada, certo?

Mas a guinada não é só de Naledge. As tais novas cartas postas na mesa também são cortesia de Double-O. Para o novo disco, ele deixou a técnica de sampling de lado para concentrar-se numa abordagem totalmente orgânica. O resultado pode ser percebido mais facilmente em todos os breaks do álbum; as viradas, as "texturas" - na falta de uma palavra melhor -, o peso, enfim, tudo dá a dica de que a transição de Double-O foi bem sucedida. E embora as batidas mais bem cuidadas sejam o esqueleto principal da sonoridade do álbum, dá para ver outras ramificações do trabalho de Double-O: o flerte com as rádios está presente no discreto Autotune de "Flickin" e o lado uptempo tem seus representantes em "Jukebox" e "Running".

Mas é quando os experimentos de Double-O se encontram com as performances mais inspiradas de Naledge que tudo fica melhor. Aliás, o emcee soa mais inspirado porque os beats casam melhor ou os beats soam melhores porque Naledge está mais inspirado? Não importa a resposta, e sim que a introspecção do rapper acha seu tom certo graças às construções do beatmaker. "I Am" é o melhor exemplo; o instrumental ultrapassa o limite do rap, passando um bom tempo apoiando-se apenas num piano melancólico para só depois entrarem os bumbos e caixas numa explosão de energia digna do exercício lírico sem refrão de Naledge, que culmina em samples vocais, sintetizadores e guitarras. Destaque também para a ótima saideira "Rise & Shine" e "Take Over The World", na qual Double-O tem a ajuda luxuosa de Just Blaze.

Por outro lado, a faceta mais minimalista também funciona, e isso serve para a dupla. Em "Out To Lunch", Naledge limita-se a trocar versos despretensiosos e cheios de referências old school - perceberam uma linha de "Jazz (We've Got) do A Tribe Called Quest? - com The Kid Daytona, tudo sobre uma batida igualmente eficiente, com bateria acelerada e seca. Aliás, alguns dos escorregões de "Land Of Make Believe" são exatamente o contrário; faixas muito enfeitadas, com cantorias exageradas e um mix bagunçado.

Enfim, "Land Of Make Believe" é interessante por retratar bem o momento de reflexão de Naledge e Double-O. Eles encontram-se num ponto onde querem buscar coisas novas e o novo álbum exemplifica bem isso, embora falte um single com a força de "Drivin Down The Block". Não há nada de revolucionário considerando o rap como um todo, mas existem coisas bem diferentes do que estamos acostumados a ver do Kidz In The Hall. Desde um Double-O que sampleava qualquer coisa em "School Was My Hustle" aderindo à instrumentação até um Naledge versão intimista. Entretanto, não se pode deixar de perceber que esta terapia da dupla tem a ver também com o próprio rap. Desde que entraram na indústria até agora, eles já pudem desmistificar alguns fatos, e "Land of Make Believe", ou "Terra das Ilusões", numa tradução bem livre, é um título mais do que apropriado.

Kidz In The Hall - Land of Make Believe
1. Intro
2. Traffic
3. Flickin
4. Out To Lunch
5. Bougie Girls
6. Jukebox
7. L_O_V_E
8. Will II Win
9. Take Over The World
10. Fresh Academy
11. Simple Life
12. Running
13. Do It All Again (I Am)
14. I Am (Reprise)
15. Rise & Shine

Vídeo de "Jukebox":

quinta-feira, 4 de março de 2010

re:plus: Everlasting Truth

Ano: 2010
Gravadora: Goon Trax
Produtores: re:plus (todas as faixas)
Participações: Hidroponikz (faixa 1), Anika (1), Nick Smalc (2), Pismo (3), Butta P & Gigi (4), The 49ers (6), Noah King & Leah Hanna King (8), Cise Star (9), Cokiyu (13), I Hate This Place (14) e Hietake Takayama (15).

A cena de Hip-Hop do Japão é, atualmente, uma das mais prolíficas, à parte os EUA, do mundo. Calcados principalmente numa vertente denominada por lá de mellow rap, os japoneses alcançaram sucesso comercial e de crítica, com gravadoras lançando bons trabalhos e um grande número de artistas emergindo. Mas o "setor" do rap que notabilizou os japas é a produção. Apostando sempre numa mistura entre jazz e rap - daí o mellow rap -, os caras já revelaram gente como Nujabes, Cradle Orchestra, Uyama Hiroto e Super Smoky Soul. Agora, é a vez da dupla re:plus - assim, com tudo em minúsculas mesmo - , formada pelo DJ Kohei Sato e o pianista e produtor Hiroaki Watanabe. Eles lançaram neste ano seu álbum de estreia, "Everlasting Truth", depois de aparições em dois volumes da bem sucedida coletânea "In Ya Mellow Tone".

Como é um disco de produtores, o trabalho segue meio que uma fórmula talvez inconscientemente definida pelos japas: uma mistura de faixas instrumentais com participações de emcees convidados, a maioria norte-americanos. E o segredo de "Everlasting Truth" é justamente balancear estas duas vertentes e oferecer variantes: uma das faixas, "Blue Sky", deixa o rap de lado para dar lugar à cantora japonesa Cokiyu, enquanto "4 AM" serve como background para a spoken word de I Hate This Place. No todo, são nove canções com voz em cima e outras seis imaculadas, apenas instrumentais.

Quem conhece um pouco da cena japonesa já deve imaginar como é o som do re:plus. A atmosfera é toda tranquila, com melodias suaves fortemente influenciadas pelo jazz. Em alguns momentos, porém, a dupla de produtores consegue incluir sem sobressaltos a sujeira do rap, criando uma mistura muito bem-vinda. É o caso do single "Time Goes By", de longe a melhor faixa do disco, que conta com instrumentação impecável, de strings a pianos, todos bem nostálgicos, mas lança mão de um break empoeirado que faz o contraponto perfeito no mix.

Falando em instrumentos, a proeminência é de pianos - afinal, a metade da dupla Hiroaki toca - e saxofones, de todos os gostos. "We The People" é o ápice desta outra combinação, com o primeiro sendo o coadjuvante para o segundo. Mas não é só o jazz que tem espaço em "Everlasting Truth". Até a música brasileira dá as caras, como na faixa sugestivamente intitulada "Sol", com violão bem tupiniquim e uma batidinha inconfundível.

Nas faixas instrumentais, a habilidade de Hiroaki e Kohei fica ainda mais visível. Com o estéreo só para eles, os caras criam climas espetaculares, capazes de fazer relaxar até mesmo o mais estressado dos executivos. Em suma, é música para alegrar a alma, para ouvir logo depois de acordar e se preparar para encarar o mundo. E algo engraçado ocorre: como muitos outros beatmakers, os dois criam instrumentais que não precisam de emcees para rimar em cima. A diferença é que estes beats ainda guardam uma estrutura que possibilita que eles possam ser utilizados como base por rappers sem dinheiro para pagar suas batidas. Muitos produtores criam instrumentais tão independentes que mesmo o emcee mais experiente teria dificuldade em invadir o espaço do beat; isso não acontece com as criações mais "democráticas" dos re:plus.

Faixas como "Gettin Close" e "Everlasting Truth" são um bom exemplo destas possibilidades, mas nada se aproxima mais do ideal do que o combo jazz-rap de "White Avenue", uma mistura perfeita entre a sofisticação do primeiro com a agressividade do segundo, com um piano viciante em loop e uma batida forte. Mas o melhor fica guardado para o final, com um break sujíssimo dando o gran finale. Esta faixa é tão boa que poderia ser usada por qualquer emcee, mas ninguém a faria tão espetacular quanto ela é sozinha, sem acompanhantes. Entre as faixas com voz, o destaque é "Time Goes By", com o rapper Hidroponikz e a cantora japonesa Anika. Numa performance extraordinária, o emcee nova-iorquino fala sobre a morte de pessoas partidas, enquanto a japinha revela-se dona de uma voz belíssima. Entretanto, faixas como a já citada "We The People" e "Imagine", com o grupo The 49ers, merecem menção.

No fim das contas, "Everlasting Truth" é mais um trabalho sólido de uma cena que, mesmo apostando maciçamente num só tipo de rap, consegue produzir registros de uma qualidade musical espantosa. Podemos dizer que os japoneses acharam seu nicho, e, enquanto não o saturam, nos brindam com artistas extremamente talentosos e que, se não inovam a nível local, trazem uma nova abordagem em contraponto ao rap dominante, o norte-americano. Que esta tradição de batidas belíssimas, casamento perfeito entre jazz e rap e capas espetaculares torne-se milenar também. Por que não?

re:plus - Everlasting Truth
01. Time Goes By
02. Never Looking Back
03. We the People
04. Overcome
05. Everlasting Truth
06. Imagine
07. Dec 27
08. On and On
09. Sol
10. Getting Close
11. Moonscape
12. White Avenue
13. Blue Sky
14. 4 AM
15. Time Goes By (cover)

Vídeo de "Time Goes By":


Curioso com a cena do Japão? Leia textos sobre o coletivo Cradle Orchestra aqui e aqui. E confira uma resenha sobre o Super Smoky Soul aqui.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Inspectah Deck: The Manifesto

Ano: 2010
Gravadora: Traffic
Produtores: J. Glaze (faixas 1, 10 e 15), Alchemist (2), Moss (3 e 19), Dtox (4), Inspectah Deck (5, 7, 8 e 12), Lee Bannon (6), Mental Instruments (9), Khino (11), Mike Cash (13), Flip (14), Shorty 140 (16), K. Slack (17), Cee The Architech (18) e Agallah (20).
Participações: Cormega (faixa 3), Ms. Whitney (5), MeShel (7), Raekwon (9), AC (9), Carlton Fisk (12), Fes Taylor (12 e 18), Termanology (13), Planet Asia (13), Kurupt (16), Billy Danze (16), Cappadonna (18) e Pleasant (20).

Inspectah Deck é um injustiçado. O cara faz parte do melhor grupo de rap de todos os tempos - o Wu-Tang Clan - e é responsável por alguns dos versos mais impressionantes da discografia do grupo. Assim, sempre foi considerado um dos mais expressivos emcees da banca. Entretanto, o Rebel INS nunca teve a exposição à mídia que alguns de seus amigos - RZA, Raekwon, Method Man e Ghostface Killah, principalmente - conseguiram. A fama de Deck foi outra: ele tornou-se conhecido por se destacar sempre nas participações que fazia pelo mundo do rap afora e, claro, ser o responsável pelo primeiro verso nas posse-cuts do Clan - "Triumph" é o exemplo mais conhecido.

Além disso, Deck é um dos membros do Clan que não foram abençoados com um disco inteiro produzido por RZA no auge do grupo. GZA, Meth, Rae e Ghost tiveram - e todos foram clássicos. Imaginar como seria um álbum de INS naquela época é algo não raro entre os fãs do Wu e é de se supor que o fato faria, certamente, justiça a este emcee. Coincidência ou não, a discografia solo de Inspectah Deck é bem mediana, nunca correspondendo às expectativas criadas. E é isso que acontece com seu mais novo projeto, "The Manifesto".

Aliás, "The Manifesto" é a melhor representação dos problemas da carreira solo de Deck. Liricamente, ele continua em ótima forma, com um flow ainda mais afiado e os versos extremamente técnicos, assim como há 15 anos atrá. O problema está nos ouvidos de INS: os beats, alguns produzidos pelo próprio rapper, de forma alguma chegam perto da excelência lírica do emcee. As ofertas vão desde backgrounds insossos que ao menos dão espaço para a performance do rapper até estruturas formulaicas constrangedoras. E a crítica aqui não vai apenas para as batidas em si. Algumas faixas, encaradas como canções num todo, deixam bastante a desejar.

Obviamente, não se pode descartar completamente um artista como Inspectah Deck. E o começo é até promissor: sua levada acelerada em "Tombstone Intro" empolga rapidamente qualquer ouvinte e faz as expectativas subirem; o primeiro single, "The Champion", chega em seguida e mantém a dignidade, com uma batida simples, mas efetiva, cortesia de Alchemist, no ponto para o Rebel destilar sua habilidade. A partir daí, porém, o álbum cede a faixas genéricas e sem imaginação, embora Deck se esforce sinceramente para fazer valer sua qualidade.

Os outros bons momentos são esporádicos, mas dignos de nota. "9th Chamber 2" é uma continuação da faixa de mesmo nome de "Uncontrolled Substance", o primeiro disco do rapper, e, como toda música do Wu com "chamber" no título, mantém a tradição de batidão pesado, e ainda ganha de bônus Deck experimentando novamente com o flow, num estilo chamada-e-resposta. "Do What U Gotta", por outro lado, apela para um clima mais tranquilo, com um beat mais orgânico, para Inspectah dar alguns conselhos para a juventude, do alto de sua experiência. Por fim, "Crazy" carrega a distinção de ter a melhor batida do álbum, com um sample vocal suave dialogando com o conceito da faixa: primeiro, um storytelling de Deck sobre um moleque da favela que vê no crime a solução dos problemas; depois, uma coletânea de pensamentos que culmina na ótima, porém atrasada, tirada: "Eu vou votar no Obama, só espero que eles não o assassinem / estou irritando o governo, eles estão irritados com o fato de que o próximo presidente será ou um negro ou uma mulher".

Como as rimas acima mostram, Inspectah Deck continua afiado por todo o álbum. O grande problema realmente é o acompanhamento dos beats. E nem é preciso bater na tecla chata de que era necessário que RZA produzisse o disco. A questão não é essa - até porque o Abbott não está na sua melhor fase -, mas fica claro que o que Deck precisa fazer para lançar um bom álbum é grudar num bom beatmaker - e bons produtores brotam dos EUA como jogadores de futebol brotam do Brasil - e se trancafiar no estúdio com o escolhido. Ao menos daria ao projeto um senso de coesão e consistência, diferente do clima meio mixtape - no mau sentido - que "The Manifesto" sugere. É curioso também notar que Deck meio que abdicou do Wu no disco, algo que ele mesmo destacou em entrevistas; em vez da aparição maciça dos companheiros de grupo, apenas Raekwon e Cappadonna dão as caras, enquanto nenhum produtor contribui para o álbum. Seria uma tentativa ligeiramente vingativa de mostrar que não precisa mais da banca?

Quem acompanha o Boom Bap há algum tempo já deve ter percebido que eu geralmente só escrevo sobre discos que me agradem - nem todos os discos que eu gosto estão aqui, mas certamente todos que não gosto NÃO estão aqui -, mas achei interessante falar sobre "The Manifesto" para ilustrar a situação peculiar de Deck. Um dos grandes rappers da história simplesmente não consegue lançar um álbum do seu nível. Curioso como, tirando algumas raras exceções, os beats são cortesia de produtores completamente desconhecidos. Será que o orçamento para o álbum era tão baixo que não podia comportar beatmakers de mais qualidade ou nenhum deles quer trabalhar com Inspectah? E RZA, ele não foi procurado pelo amigo - que já disse numa entrevista não ter gostado da direção que "8 Diagrams" tomou - ou novamente deu as costas? Questões difíceis de serem respondidas no mundo do Wu.

Esperemos, portanto, por "Wu-Massacre", ou mesmo por "The Rebellion", o decantado último álbum de Deck, que supostamente será produzido por RZA. Enquanto isso, o Rebel INS vai entrar para a História não só como um dos melhores emcees do rap mundial, mas também como um dos mais injustiçados, um daqueles de comprovada capacidade que nunca conseguiu traduzir suas qualidades para um álbum solo.

Inspectah Deck - The Manifesto
1. Tombstone Intro
2. The Champion
3. Born Survivor
4. This Is It
5. Luv Letter
6. P.S.A
7. T.R.U.E
8. We Get Down
9. The Big Game
10. Tombstone Interlude
11. 9th Chamber 2
12. Really Real
13. Serious Rappin
14. Do What U Gotta
15. Crazy
16. Gotta Bang
17. The Bad Apple
18. Brothaz Respect
19. 5 Star G
20. The Neverending Story